Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Cercados pela morte, nos submetemos a um governo que a promove

Negacionismo serve tanto para subestimar uma pandemia como para inflamar a histeria antivacina ou culpar indígenas pela devastação da floresta

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O negacionismo é a incapacidade de encarar a morte, ao mesmo tempo que a promove. Há diversas maneiras de promover a morte, e negá-la ainda é uma das mais eficientes e perversas, porque supõe a cumplicidade das vítimas.

Serve tanto para subestimar uma pandemia como para inflamar a histeria antivacina ou culpar indígenas pela devastação da floresta, depois de incentivar grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais a invadi-la, e fazendeiros a queimá-la.

O negacionista é um agente da morte, cúmplice ou associado, consciente ou não, incapaz de encarar os fatos. A morte dos outros é a recusa da sua.

Assim como o mentiroso precisa acreditar na própria mentira, o negacionista não se deixa perceber na morte que ele promove. Sua suposta ignorância é uma reação torta e desesperada à consciência de seu fim.

Num mundo assombrado pelo fim, mas onde a dúvida, que é uma das bases da ciência, passa a servir a sofismas que visam desautorizar a ciência, para sobrevivermos é imperioso reapoderar-se do sentido da morte. É o que faz um livro de poemas espantoso que acaba de sair nos Estados Unidos: “Guillotine” (guilhotina), de Eduardo C. Corral.

O universo desses poemas é o deserto de Sonora, no Arizona, onde nasceu o poeta, filho de imigrantes mexicanos, e o confronto com a morte dos que cruzam o deserto a pé. O poema de abertura se inspira nas palavras e frases riscadas pelos imigrantes, como testamentos, nos barris de água espalhados por ONGs para salvá-los.

A polícia de fronteira chama os imigrantes de “corpos”: um corpo correndo, um corpo estendido no chão etc. “No jargão dos agentes, o termo/ para os que atravessam a fronteira é o mesmo/ estejam vivos ou mortos.”

Os “corpos” são os outros. Eduardo C. Corral cria imagens maravilhosas para renomeá-los contra a onipotência infantil e narcisista da negação da morte: “uma gaita foi tatuada na minha clavícula/ sinto a boca da morte seus lábios metálicos e quentes”; “se você me acha bonito pelado/ espere só até me ver morto”; “marco meus braços,/ entalho minhas pernas,/ cinco seis dias”; “não toco em espelhos. É errado,/ meu pai sempre dizia,/ tocar um homem.”.

No poema que dá título ao livro, dois escorpiões carregam uma lâmina de barbear ao longo do corpo do poeta: “Devagar, em uníssono/ (...) levantam a pequena guilhotina./ Cabe a mim suspender o desejo/ pelo tempo que levam/ para carregar a lâmina/ pela minha pele.”

Fenômenos recentes como o QAnon revelam, mais que ignorância, uma necessidade alucinada de negar a morte e substituí-la, como faria uma criança, pelas fantasias mais alopradas. É um desdobramento dos negacionismos em versão turbinada: diante do esforço d e viver e lutar contra as formas de destruição que nos caracterizam, é preferível negar o real, viver a fantasia dos últimos minutos como se fossem eternos.

A estranha formulação “Deus é fiel”, tão brasileira, invertendo a lógica que pede fidelidade ao crente, introduz o negacionismo no próprio fundamento da fé. Deus deixa de ser representante da vida e da morte, para corresponder, como um animal de estimação, às expectativas do dono.

Estamos cercados pela morte por todos os lados e ainda assim nos submetemos a um governo que a promove. Somos asfixiados, queimados, envenenados, assassinados, mas continuamos apoiando o que nos mata.

Assistimos à nossa morte, incapazes de reagir à incúria e à má-fé, seja por ganância, por interesse de não entender que estamos no mesmo barco, que somos parte do mesmo país, seja porque preferimos limitar o alcance da morte a uma projeção imaginária, um suposto outro (as duas coisas estão ligadas, é claro).

A tática de jogar uns contra os outros enquanto se acende o pavio que incendeia o bem comum não daria certo se não houvesse um terreno fértil, uma população cujas partes não se reconhecem no todo, e isso por razões históricas óbvias, repetidas à exaustão.

Diante da morte, as partes lutam com mais urgência por seus interesses imediatos. Nunca acham que é a morte. Falta sempre mais um degrau. Os outros, os mortos, são apenas corpos.

Houve uma vez um grande militar que passou à história do país com o lema “morrer se preciso for; matar, nunca”. Estava se referindo aos povos indígenas. Parece que estamos nas mãos de gente que inverteu a divisa numa forma de onipotência narcisista: “matar se preciso for; morrer, nunca”.

O país está sendo executado, mas é como se nós, por meio de algum pensamento mágico, concedendo autoridade ao carrasco, estivéssemos imunes à guilhotina.

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