Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Literatura não é manual nem modelo de comportamento

Autor de 'Lolita', Nabokov já combatia nos anos 1950 uma leitura conservadora, que hoje se impõe como novidade

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Minha amiga me diz que, agora que o bolsonarismo foi reduzido em essência a um problema de caráter (“quem entendeu entendeu, quem não entendeu...”), ela já se sente desincumbida para me mandar coisas que não têm diretamente a ver com o nosso inferno e a nossa estupidez. É um alívio. A última foi um documentário sobre Nabokov e “Lolita”, dirigido por Christopher Sykes, em 1989, para a BBC (“My Most Difficult Book – The Story of Lolita”). E, de fato, é como se entrássemos em outro mundo.

Tudo o que dizem os entrevistados, que em outros tempos teria passado por simples bom senso, ganha a marca de uma inteligência surpreendente em comparação com o que nos acostumamos a ouvir.

Sobre suas aulas na Universidade Cornell, o escritor diz: “Tentei tornar os alunos bons leitores, que leem livros não pelo motivo infantil de se identificar com os personagens, nem pelo propósito adolescente de aprender a viver ou pelo projeto acadêmico de fazer generalizações”.

Nabokov combatia, já naquela época, uma leitura convencional e conservadora, que hoje se impõe como novidade e às vezes até como revolução.

Se o bolsonarismo acabou reduzido a um problema de caráter, a literatura inversamente não pode ser atrelada à simples evocação de uma questão moral (o que não quer dizer que “Lolita” não seja um livro tremendamente moral e trágico). Literatura não é manual nem modelo de comportamento. Ela não tem de seguir diretrizes, requisitos e restrições impostas à liberdade de explorar tudo o que é humano. Literatura não é um problema de caráter. E é ridículo ainda estarmos discutindo isso.

No documentário, a romancista A.S. Byatt discorre sobre a “autoexcitação masculina” numa passagem célebre —e para ela, que leu o livro na adolescência, especialmente perturbadora—, quando o protagonista Humbert Humbert chega ao orgasmo, por imaginação (sem recorrer ao sexo ou à penetração), com a ninfeta sentada em seu colo, num sofá.

A perturbação vem da ambiguidade entre a suposição da inocência e a consciência da menina sobre seus poderes de sedução como elemento fundamental do desejo.

O biógrafo Brian Boyd diz que o encanto de Nabokov como escritor está no fascínio e no interesse que ele nutre pela riqueza do mundo natural, dos sentimentos etc., ao mesmo tempo que manifesta sua frustração em relação a essa riqueza e a esse mundo, que sempre deixa a desejar. É daí que vem a força da literatura.

A.S. Byatt arremata que Nabokov dá a impressão de que é a linguagem que cria o mundo. O escritor, a seu tempo, compara a literatura ao xadrez, à criação de charadas e problemas. E Martin Amis confirma que “Lolita” é um desafio intelectual, não a expressão de um homem escravizado pelo desejo de ninfetas.

Homem com camisa branca aponta para a direita
O escritor Vladimir Nabokov, em retrato de 1973 - Wikimedia Commons/Reprodução

Uma entrevista do diretor de teatro Romeo Castellucci a Júlia Guimarães, por ocasião da difusão do seu “Réquiem”, em março, na plataforma da MIT-SP, pode ajudar na compreensão do raciocínio literário de Nabokov: “O teatro põe a realidade em crise. O teatro é a cena da crise. Tudo entra em crise no palco cênico. Desde sempre o teatro combate o princípio de realidade. O tempo cronológico já não vale. A ideia de espaço já não vale. São outras leis físicas. Um palco cênico é um outro espaço e um outro tempo. É um mundo paralelo, onde tudo é possível, onde se discute, mais uma vez, a realidade”.

“Não acredito num teatro pedagógico. Não acredito no artista como uma espécie de pregador ou mestre. No meu teatro, o papel fundamental é paradoxalmente o espectador. Trata-se de dar ao espectador uma série de imagens que criam um problema sem solução. A solução deve ser encontrada pelo espectador, por sua própria imaginação, por sua inteligência. O espectador decide se a imagem é moral ou imoral. Há uma responsabilidade de decidir se ver é um ato inocente ou não mais.”

“Tenho consciência da realidade, claro, a realidade me impressiona, mas meu trabalho nunca é um comentário sobre a realidade. O papel do justo é demasiado simples. É muito fácil julgar. O teatro é um escândalo muito mais profundo. O meu interesse é questionar o mal.”

“Não é um teatro ilustrativo. É um ato sem consolo. O problema somos nós, não o que temos diante de nós.”

Fazer a literatura corresponder à representação de um modelo moral serve de ilusão paliativa, é o correlato natural e desesperado da nossa impotência diante da indecência da realidade, diante do mal. Mas também é desistir da charada que não conseguimos resolver. É jogar a toalha antes mesmo do início da partida.

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