Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Envolta em bandeira, a bolsonarista sabe que se engana

Melhor acelerar contra muro intransponível a se esforçar por guinada radical

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Ela sai de casa enrolada na bandeira do Brasil. Acha que vai fazer história.

Há quem diga que o capitalismo vive seus estertores e que gente como ela sirva apenas para engordar, no papel irrefletido de sua individualidade, a massa de manobra de um processo mundial inescapável. Há quem diga que toda a miséria, a brutalidade e a violência do mundo sejam apenas a consequência natural e irreversível da entropia capitalista, e que gente como ela tenha sido empurrada inadvertidamente para esse lugar.

Há quem veja nessa implosão irrefletida uma saída do caos. Outros, entretanto, pensam que não há saída, só mais barbárie. E nesse sentido, inconscientemente, segundo os apocalípticos, ela estaria fazendo apenas o que lhe cabe e o que lhe resta: melhor acelerar contra um muro intransponível a despender o esforço sobre-humano que exigiria uma guinada radical de vida e de comportamento, sem garantia de nada, para completar. Já não há volta. Ela entra no metrô enrolada na bandeira do Brasil.

Única passageira sem máscara no vagão lotado, ela aproveita para dar likes, no Face, no Twitter e no Instagram, para as asserções do ministro da Economia, mesmo sabendo, como qualquer pessoa que consegue realizar projeções algébricas elementares, que os argumentos do ministro da Economia não se sustentam na lógica, representam antes sofismas e preconceitos, interesses dissimulados, não ditos, como aliás os do ministro do Meio Ambiente.

Qualquer um capaz de realizar operações algébricas elementares entende que o interesse na derrubada da floresta e na usurpação de terras públicas não acaba em grileiros e madeireiros ilegais. Eles estão lá pra abrir a picada.

“Você sabe que tudo o que sua gangue diz é mentira. Vocês só podem viver de fraudes”, uma mulher se adianta e lhe diz, do nada, entre os passageiros espremidos a sua volta.

“Sua gangue é feita de covardes, moleques, gente que não tem honra nem no crime, e que quando é pega com a mão na botija, por gente grande, pede perdão, diz que se arrependeu, pra poder avançar com seu projeto criminoso na surdina, rindo à socapa. Antes você dizia que era contra a corrupção, mas no fundo só não queria pagar multa e imposto. A verdade é que você é contra a lei. O que começa em crime só pode terminar em crime.”

Ela se espanta. E responde: “Ninguém perguntou nada”.

Mas a mulher continua, atrevida: “Você sabe muito bem que a omissão de um governo diante de suas responsabilidades tem a ver, sim, com a falta de honra; que a incapacidade de assumir responsabilidade por seus atos tem a ver com falta de caráter e de dignidade; cagaço de ministros, militares e presidente pegos de calças curtas porque o plano não funcionou como previsto, por enquanto pelo menos...”.

Ela se vira, pede licença entre os passageiros espremidos, tenta se afastar da louca.

Mas a louca a persegue como uma sombra: “Raiva de negro, de viado e de pobre. Raiva de ser mulher. Raiva de mulher que luta por seus direitos. Você é do tipo que acredita que basta ser racista pra não acabar escravizada, não é? Tem medo do poder de contaminação da pobreza. Acha que basta repetir o que dizem ricos e celerados pra ser poupada da miséria. Eu te conheço. E até te entendo. Ninguém é de ferro. Opa! Mas agora você está armada! Pra que é esse trabuco aí na bolsa? Acabou de adquirir?”.

Os passageiros tentam não olhar para a bolsa da mulher enrolada na bandeira do Brasil. Ela se agarra à bolsa, com medo de ser roubada. “É pra se defender de assaltante? Defender sua liberdade? Se bem que, lá no fundo, você sabe que não é matando preto e pobre na favela que vai acabar com o tráfico, né? Você frequentou escola, né? Sabe que basta cortar o dinheiro gordo. Mas aí teria de combater a corrupção na polícia também, e entre gente polpuda, né? Melhor não. Ou você acredita mesmo que tráfico é negócio de miseráveis?”

A mulher insiste no refrão: “Você sabe muito bem que sua gangue é feita de bostas e de lambe-botas, gente sem espinha dorsal...”.

Já não há como fazê-la calar a boca. A ideia era chegar em praça pública, mas não vai dar. Ela tira a arma da bolsa. Os passageiros se afastam, uns gritam, amontoam-se, batem nas portas do trem em movimento.

Ela aponta o revólver para a mulher. Mas a mulher continua falando mesmo assim. A mulher é ela. As palavras saem de sua boca numa torrente inesgotável, continuam a sair da própria boca, onde ela afinal enfia exasperada o cano do 38 que tirou da bolsa e, na falta de melhor opção, dispara.

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