Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bernardo Carvalho

Queimar Borba Gato não é igual a vandalizar mural de Marielle

Um monumento homenageia caçador de indígenas e negros; o outro, a vítima de assassinato político

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ouvi outro dia um comentarista na TV equiparando o ataque ao monumento de Borba Gato à investida contra o mural em homenagem a Marielle Franco numa escadaria de São Paulo. Me fez lembrar aquela história dos “dois extremos”, reproduzida a gosto pela mídia nas últimas eleições presidenciais, com consequências irreparáveis e imperdoáveis. Se alguém ainda tinha alguma dúvida quanto à falsidade do silogismo, basta ver onde fomos parar.

O comentarista reproduzia, “em nome da democracia”, o sofisma no qual se escora o ataque à pintura em homenagem a Marielle como represália, embate entre duas “narrativas”, entre duas ideologias, e assim o justificava. Segundo ele, a democracia é feita de “narrativas” em disputa, e por isso não caberia vandalizar uma estátua, sob o risco de também ver-se vandalizado.

Ora, o raciocínio do comentarista, sob o pretexto de defender a punição aos vandalismos em geral, é um engodo e uma sucessão de erros. Em primeiro lugar, só poderia haver “guerra de narrativas” se não houvesse passado nem realidade. Existem fatos: de um lado, esforços para os revelar; de outro, tentativas de os encobrir.

Um monumento presta homenagem a um assassino, caçador de indígenas e negros escravizados; o outro, à vítima de um assassinato cometido por gente próxima do poder. Não se trata de uma “guerra de narrativas”. E é óbvio, nesse caso, em qual dos lados a ideologia se aninha.

Se o intuito é defender a democracia, não se pode começar por confundir as ações. Numa democracia não se justifica vandalizar a memória das vítimas de assassinatos políticos, assim como não cabe homenagear assassinos e torturadores. Equiparar as duas ações ou os dois monumentos é endossar o jogo e o discurso no qual nos enredamos no Brasil, como se não houvesse fatos nem história, só “ficções”.

Isso nos leva a um segundo ponto, que é a apropriação de conceitos literários, reduzidos ao lugar-comum, para confundir e desbaratar a realidade. Tanto narrativa como ficção têm na literatura sentidos complexos, que a apropriação vulgar ignora ou corrompe por oportunismo.

Narrativa e ficção estão ligadas à possibilidade de imaginar, não como obliteração da memória, mas como sua garantia, projeção da memória para a frente, para o futuro, para o desconhecido.

Memória e imaginação não sobrevivem separadas, tampouco se confundem. Ambas buscam a verdade como compreensão e alargamento dos sentidos do mundo, não o seu estreitamento. Fundamentais tanto para as ciências como para as artes, elas procuram saídas, e para isso alimentam-se no confronto com o real, não na sua dissimulação ou na reprodução de preconceitos, lugares-comuns e imposturas.

O que os fascismos buscam por sua vez, ao substituir a memória por “narrativas”, é converter a imaginação numa alucinação invertida, direcionada para o passado. Não se trata mais de enfrentar o desconhecido, mas de alucinar o que conhecemos. É a desautorização da ciência e da história. É onde estamos, delirando, paralisados, impossibilitados de agir e de raciocinar.

Queimar a estátua de Borba Gato não tem nada a ver com vandalizar o retrato de Marielle Franco pintado num muro público.

A narrativa literária é prospectiva. Ela se propõe a acrescentar, alargar os sentidos: é mais uma narrativa. Ao contrário, a ideia de narrativa voltada para o passado, como anulação dos fatos, tem a ver com o embotamento da razão, com o estreitamento oportunista das possibilidades de imaginar.

Associar Borba Gato a tradição a ser preservada significa abraçar o crime como fundação legítima da nação, caminho a seguir para trás. É onde estamos, delirando, paralisados.

O momento brasileiro exige que deixemos esse lugar, para podermos voltar a imaginar o futuro. É urgente saber separar as coisas, evitar o lodaçal do vale-tudo no qual a ideia rebaixada de “narrativa” nos aprisiona.

É a armadilha na qual caíram os militares. Ao desautorizar a verdade, reduzindo-a a “narrativa” no sentido vulgarizado do termo, “guerra de ideologias”, ao rechaçar a memória e os fatos, não lhes restava escolha além de abraçar uma alucinação.

Trata-se de uma negação implosiva, suicida. No lugar da coragem, empenharam toda a sua miopia interessada em reinventar um passado que os absolvesse e redimisse, um país sem memória e portanto sem imaginação, e sem perspectiva de futuro, ao qual restou uma única narrativa comum, estreita e repetitiva: a da impunidade. Ao recusar a culpa e a responsabilidade, os militares se tornaram reféns do crime.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.