Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu indígenas

No bolsonarismo, não há futuro para indígenas como Baita e Tamandua

Para sobreviver, últimos Piripkura precisam se expor ao inimigo latifundiário

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No léxico bolsonarista, comunismo é ter de pagar imposto e propriedade privada é o que você consegue usurpar do Estado. É um mundo para o qual não há futuro comum. Ou seja, um mundo para o qual não há futuro nenhum.

Encurralados pelos agentes desse mundo-escória, os últimos representantes de uma cultura em desaparecimento tentam sobreviver com a resiliência e a dignidade que lhes resta.

Você pode até achar que eu esteja me referindo a você e a mim, à nossa resistência, mas a verdade é que, mesmo a contragosto, na nossa revolta mais ou menos passiva, ainda estamos no campo inimigo.
Resistência de verdade é o que se vê no documentário “Piripkura” (2017), de Renata Terra, Bruno Jorge e Mariana Oliva. O filme, disponível no Mubi, tornou-se ainda mais oportuno com a proximidade da expiração da portaria de restrição de uso das terras indígenas de povos isolados (havia na Funai, em 2017, 114 registros de grupos indígenas vivendo em isolamento voluntário no país ) e a discussão do infame marco temporal, em análise no STF.

Cena do documentário "Piripkura" mostra dois índios da etnia de contato recente que dá título ao filme
Cena do documentário "Piripkura" mostra dois índios da etnia de contato recente que dá título ao filme - Divulgação

Enquanto esperam a demarcação oficial do território onde vivem, os Piripkura contam, desde 2008, com a proteção legal de suas terras, renovada provisoriamente a cada três anos pela Funai. Agora, nas mãos de uma equipe da qual também participam servidores ligados a interesses ruralistas, a portaria de restrição de uso, cabo de guerra entre Governo e Ministério Público, foi renovada por apenas seis meses.

Cercada de latifúndios (áreas imensas foram desmatadas na região desde os anos 70), invadida por grileiros e à mercê de madeireiros e garimpeiros que só esperam o sinal verde para invadir oficialmente, brandindo um estudo governamental recente que identifica na área jazidas minerais promissoras, a terra Piripkura (240 mil hectares no noroeste de Mato Grosso) teve mais de dois mil hectares desmatados ilegalmente apenas entre agosto de 2020 e abril deste ano. Em agosto de 2021, foram detectados 3,4 mil hectares incendiados.

A proteção legal do território onde vivem e resistem os Piripkura depende da prova de vida dos indígenas, contra a qual trabalham garimpeiros, madeireiros e grileiros, justamente. Para sobreviver, os Piripkura precisam desaparecer no que lhes resta de floresta. Para que a mata sobreviva, entretanto, é preciso que apareçam, provem que estão vivos e assim se exponham ao inimigo e à extinção.

É desse paradoxo que trata o documentário, que acompanha, nos anos que precedem o governo Bolsonaro, um funcionário da Funai à procura dos indígenas, para garantir a renovação da proteção legal de suas terras.

É difícil saber quantos sobreviveram aos massacres organizados por invasores brancos desde os anos 70. Ao certo, pelo menos dois: Baita e Tamandua, tio e sobrinho, remanescentes de tradições hoje reduzidas à urgência de sua sobrevivência.

São os protagonistas do filme. Formam uma sociedade de dois, um coletivo de defesa. Um não sobrevive sem o outro. É o drama da resistência dos povos isolados, cuja dimensão metafísica, universal, deveria nos servir de lição e exemplo enquanto nos submetemos inexplicavelmente a quem nos mata, a uma sociedade doente, às artimanhas de gente capaz de encobrir as circunstâncias da morte da própria mãe para não estragar o “plano”.

Uma sociedade na qual, durante a pandemia, presidente e ministros disputam o protagonismo de agentes da morte com planos de saúde, conselhos médicos e igrejas lutando contra medidas legais que proíbem novos acessos a grupos indígenas isolados. Uma sociedade na qual o êxito do agronegócio resulta em fome.

O que nos leva a achar natural que um grupo reduzido por nossas ações de extermínio não tenha o direito de cuidar e viver do que lhes resta de florestas seculares e que, em contrapartida, um grupo reduzido de usurpadores possa ocupar e destruir a qualquer momento, ilegalmente e em benefício próprio, o que é de todos?

Por que insistimos em nos identificar com a minoria dos usurpadores? Temos, quem sabe, a esperança de um dia também poder tirar proveito pessoal da nossa destruição?

Baita e Tamandua aparecem no meio do filme. São inseparáveis e interdependentes. Já não correspondem à idealização do bom selvagem; representam antes a urgência de um corpo social íntegro. A simbiose entre os dois sobreviventes é um alerta para a nossa idiotia coletiva e suicida.

Não há vida sem o outro. Quando falo do filme a um amigo, ele logo me diz o óbvio: “No dia em que um morrer, o outro morre também”. Claro. Mais difícil é compreendermos que no dia em que eles morrerem, nós morreremos junto.

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