Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu forças armadas

Como os militares insistem, o inimigo no Brasil é interno

Trechos da obra de Georges Bernanos sobre o colaboracionismo parecem escritos para os brasileiros de hoje

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Uma nova e extensa biografia de Georges Bernanos (1888-1948) acaba de sair na França ("La Colère et la Grâce", de François Angelier, ed. Seuil). O escritor francês passou a Segunda Guerra no Brasil, exilado no interior de Minas, numa fazenda chamada Cruz das Almas.

O exílio que lhe permitiu escapar aos horrores da guerra também lhe garantiu a distância para combatê-los. Ali ele escreveu as crônicas e os manifestos que levaram De Gaulle a exortá-lo a voltar à França, em 44, e que foram reunidos no volume "Le Chemin de la Croix-des-Âmes", em 48.

A distância da capital lhe permitiu além disso resguardar-se das contradições do país que o acolhia. Longe do Rio, na noite profunda do Brasil, podia manter a imaginação a salvo da estupidez, da brutalidade e do autoritarismo do país. Buscava o homem simples, o excluído em oposição ao abjeto.

A estratégia não queria dizer, entretanto, que ignorasse o horror. De longe, estava atento aos descaminhos da civilização. Entre outras coisas, à aliança da Igreja com o fascismo —e não apenas na Europa. Afinal, a imaginação é a capacidade de ver no escuro: "Serei então o único a defender essa evidência de que a guerra só é vencida pela força da imaginação e da audácia?".

Os grandes romances de Bernanos, desde "Sob o Sol de Satã", de 1926, nascem na escuridão de uma província imaginária onde se traficam a alma, o mal e a morte. A questão do colaboracionismo (e de como diversas frentes da sociedade contribuem, numa combinação de oportunismo, má-fé, burrice e pusilanimidade, para a instalação do horror) não poderia ter-lhe sido indiferente.

Bernanos foi um homem singular e extravagante, que terminou por se impor às regras de fidelidade que sustentam partidos, igrejas e ideologias. Católico conservador, nunca transigiu com a corrupção da Igreja. Jovem monarquista de extrema direita (guiado por um sonho heroico e anacrônico do mundo, que a realidade iria solapar reiteradamente), terminou por se indispor com a Ação Francesa (movimento integrista francês), tomando a defesa da democracia.

Condecorado na Primeira Guerra, recusou quatro vezes a Legião de Honra, principal distinção conferida pelo Estado francês. Escritor extraordinário e inclassificável, ao ser convidado para a Academia Francesa deixou claro que aquilo não era para ele.

François Mauriac escreveu depois de sua morte: "Não devemos corar da esperança que depositamos nesse homem, um dos últimos a nos parecer à medida do nosso destino. [...] A Bernanos só restava pedir que correspondesse a si mesmo e seguisse sendo o homem que ele era: intratável no plano imediato e das baixas necessidades cotidianas. Ele não tinha outra missão neste mundo além de encarnar o que os místicos chamam de espírito da infância e lhe dar uma voz".

Dias antes do suicídio de Stefan Zweig, Bernanos o encontrou em Barbacena. Zweig se convertera no espectro do escritor traído pela imaginação. Um ano antes publicara um livro cego de entusiasmo: "Brasil, País do Futuro". Nesse meio-tempo, tinha visto o fantasma do totalitarismo nos trópicos. Era a última coisa que Bernanos queria ver.

Por ocasião da queda da Alemanha, em 1945, o escritor traça uma linha entre a esperança e a ilusão: "A esperança é um ato heroico e desinteressado da alma, do qual covardes e imbecis são incapazes. É a ilusão que lhes serve de esperança. Tomam esse veneno por alimento. Pois a ilusão [...] enfraquece o juízo".

A ilusão é a medida "do que os povos podem suportar de verdade". É nesse lugar que se aninha o colaboracionismo, uma entropia na qual o país, tendo perdido a capacidade de se defender, passa a servir ao inimigo. A esperança é a resistência.

Como nossos militares insistem, o inimigo aqui é interno. Sim, são eles mesmos, além de juízes, médicos, economistas, políticos etc., associados à irresponsabilidade da elite financeira local, cegos da mesma ganância, aliados num amplo projeto de destruição (social, econômica, cultural e ambiental) da nação.

"Desastres sem responsáveis não merecem o nome de desastres, são fenômenos inevitáveis da natureza. [...] Não existem desastres sem responsáveis; ao se recusar a punir os responsáveis, ou mesmo a nomeá-los publicamente, degradamos, aviltamos e desonramos a opinião pública das democracias, pois a união sagrada que assim nos orgulhamos de manter é na realidade apenas uma complacência abjeta", Bernanos escreveu em 1942.

Esse trecho, sobre a responsabilidade (e as consequências da colaboração), parece escrito sob medida para nós, brasileiros, hoje.

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