Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu Cinema

Desejo oprime e emancipa em 'Ataque dos Cães'

Filme de Jane Campion explora o confronto do desejo como demônio interior e como instrumento de justiça

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A ação de "Ataque dos Cães", de Jane Campion, acontece em 1925, no estado de Montana, noroeste dos Estados Unidos, mas o "teorema" apresentado pelo filme tem a ver com os nossos dias. É o confronto entre duas representações do desejo, duas maneiras opostas de compreender e lidar com o desejo, encarnadas por dois dos protagonistas masculinos.

Por um lado, o desejo é contradição, parte involuntária da vontade, paixão, demônio interior (que era como ele vinha sendo tratado no mundo judaico-cristão, de Agostinho a Freud); por outro, ele se converte em instrumento de poder ou, inversamente, de justiça (ou justiçamento) e emancipação. Nesse sentido, desejo se confunde com vontade.

O desejo, antes incontrolável, constitutivo do inconsciente, fonte de perturbação, transgressor da ordem, das normas e das aparências, a revelar as contradições do sujeito, das identidades e da sociedade, agora pode ser controlado, manipulado, passa a servir à consciência pragmática, à ação social e política. É mecanismo de opressão, mas também instrumento de emancipação.

A inteligência do filme (e aqui vem o spoiler) está em inverter a relação de forças entre essas duas concepções, entre a violência aparentemente ativa do algoz e a fragilidade aparentemente passiva da vítima.

O vaqueiro adulto, proprietário de terras com formação acadêmica, homem intratável e implacável, representa a contradição do possesso, debatendo-se contra um rebelde interior que ele não controla e que ameaça as normas sociais nas quais ele está inserido.

O desejo transbordante precisa ser contido, mantido oculto do convívio social. Quanto mais transbordante, maior a contradição dos atos, a violência do esforço para ocultá-lo. É o caso clássico do pastor sexualmente atraído por meninos, que vocifera no púlpito da igreja contra os homossexuais.

Em contrapartida, o adolescente afeminado, filho de uma viúva vulnerável em terra de brutos, representa a força de uma relação pragmática com o lugar da vítima. Não há aí contradição alguma. Aparentemente frágil, ele fará o que for necessário para sobreviver e defender a mãe. Aprendeu a se servir do desejo, controlá-lo e manipulá-lo. O desejo já não está oculto (e o sujeito submetido às paixões), ele é parte de uma estratégia, está confundido com a força da vontade.

É de um desejo assim que fala a professora de filosofia e feminista Amia Srinivasan no recente "O Direito ao Sexo" (Todavia). O desejo, instruído pelo poder, não é mais contradição do sujeito, demônio transgressor de regras e identidades, mas antes veículo reprodutor de preconceitos sociais e relações de opressão e discriminação.

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A filósofa feminista Amia Srinivasan - Nina Subin/Divulgação

É o desejo como expressão de poder —e, como tal, não só legislável mas passível de controle, correção e (auto)disciplina, em nome do bem e da justiça.

Se o desejo reproduz a ordem patriarcal, capitalista, branca etc., "educá-lo" seria parte indispensável de uma luta radical pela emancipação social e política de oprimidos e excluídos. Sob o risco, é claro, do paradoxo de reproduzir uma nova ordem pautada pelo regramento moral, à semelhança de um projeto de poder religioso.

Fiz referência a um "teorema" para descrever a ação de "Ataque dos Cães" no início deste texto. Na estreia de "Teorema" na França, em 1969, Pasolini concedeu uma entrevista à televisão francesa em que explicava seu filme como um enigma, uma parábola, demonstração inconclusa por oposição à narrativa épica, heroica. A obra como problema, não como solução.

No filme de Pasolini, um estranho aparece na casa de uma família burguesa e instala a crise. É um elemento desestruturante e transgressor, que o cineasta associa a Deus ou ao Diabo: "Ou seja, à autenticidade".

O desejo é autenticidade. É o que subverte a norma, o que põe o mundo burguês de pernas para o ar. É também o que define o vaqueiro atormentado no filme de Jane Campion. O desejo é sua verdade (oculta, secreta, transtornada), mas já não é a verdade do adolescente em sua aparência frágil e afeminada. Há aí uma inversão. A vontade toma o lugar do desejo, como plano de sobrevivência e vingança.

Já não há nem enigma nem mistério, nem o páthos que poderia fazer do filme um faroeste edipiano. O desejo se rendeu à consciência instrumental, pragmática, épica.

Já não é da ordem das paixões, elemento traiçoeiro, transgressor. Foi substituído pelo ímpeto justiceiro, que vem restabelecer a norma, fazer um acerto de contas com o mundo de seres contraditórios e trágicos que até outro dia ainda acreditávamos ser.

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