Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Usando línguas, Michelle Bolsonaro parece possuída para esconder vergonha

Bolsonarismo depende de linguagem de inversões, feita para acobertar fatos em nome de Deus e contra todos

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Quando, em dezembro, a primeira-dama comemorou, "falando em línguas", a aprovação do pastor André Mendonça para o STF, houve quem escarnecesse e se indignasse.

Houve quem a acusasse de veículo não exatamente do Espírito Santo, como prega o pentecostalismo, mas de oportunismo político. E houve quem a defendesse com argumentos religiosos ou até feministas.

Nesse meio-tempo, tropecei num livro publicado há alguns anos por um professor de literatura da Universidade Princeton, Daniel Heller-Roazen, com outra perspectiva sobre o fenômeno: "Dark Tongues: The Art of Rogues and Riddlers" (línguas obscuras: a arte de velhacos e charadistas), da Zone Books. Ou, na edição francesa, da Seuil: "Langues Obscures: L’art des Voleurs et des Poètes" (línguas obscuras: a arte de bandidos e poetas).

​Heller-Roazen defende que, ao longo da história, bandidos e poetas recorreram a artimanhas semelhantes para expressar o que não podiam dizer, ao mesmo tempo que guardavam para os iniciados o segredo do que diziam. Do jargão dos bandidos medievais à linguística moderna, passando pelos livros sagrados do hinduísmo e pelos mistérios druídicos, o professor tenta examinar o que por definição evita o exame para poder existir.

O que mais o interessa são as baladas de François Villon, expoente maldito da poesia francesa medieval, e a releitura que Tristan Tzara, fundador do movimento dadaísta, faz delas no início do século 20. São os poetas o foco do livro. São eles que exploram o potencial de perturbação e revelação de línguas desviantes no âmbito das línguas oficiais, nacionais, hegemônicas. A própria língua como estranhamento, transformada em língua estrangeira. Entre poetas e velhacos, porém, não é difícil adivinhar por quem caem os Bolsonaro.

Ao escamotear o sentido, as "línguas obscuras" adquirem o poder de transmissão do segredo. São menos línguas secretas propriamente ditas do que usos cifrados, crípticos e até canhestros da língua comum, servindo de resistência para grupos que o poder mantém à margem.

É o caso dos bandidos medievais que se comunicavam por jargão para escapar à lei, mas também da congregação de indivíduos pobres, iletrados, ex-escravizados, para os quais a comoção e o êxtase do contato direto e pessoal com o Espírito Santo e as Escrituras são a medida da liberdade contra uma autoridade centralizada, elitista e racista que os exclui. A língua incompreensível aos demais é a "contralíngua" do excluído, resistência à sociedade que o marginaliza.

É interessante que Martinho Lutero, mentor da Reforma Protestante, tenha condenado com veemência as "línguas obscuras", associando ao ídiche as palavras desconhecidas usadas por "mendigos estranhos e extravagantes", imputando a língua do crime e dos malfeitores aos estrangeiros, mais precisamente aos judeus.

Também é interessante que nos Vedas, textos sagrados indianos, Deus diga não e o homem ouça sim. Ouve o que lhe convém e o que lhe interessa. Os deuses falam uma língua inacessível aos homens.

Isso quer dizer que, para entendê-la, seria preciso submeter-se ao paradoxo de sair de si, contradizer-se, virar-se do avesso, ultrapassar as oposições e as crenças, permitir-se uma experiência e um contato radical com o outro. Essa seria a real comunicação com Deus, em relação à qual o balbucio glossolálico soa muitas vezes como um esforço enternecedor e revelador da sua impossibilidade.

Aqui o religioso e o poeta se separam. A parábola védica aponta para o universo da poesia. O poeta depende da ambiguidade que desafia os sentidos na própria aparência, na limpidez dos versos, ao contrário do religioso que se serve do oculto tanto para resistir à opressão como para oprimir. O incompreensível é a moeda de troca para a criação de dogmas, normas e preceitos, contra a dúvida, que é matéria da arte. Assim como no jargão das gangues, deve haver incompreensão (de não iniciados, de quem não pertence ao grupo), mas não há lugar para a dúvida, não é possível duvidar.

É de uma língua assim que depende o bolsonarismo: "O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", referindo-se inversamente à destruição de tudo, ao mais completo desmonte institucional do país. É o sim encobrindo o não. Uma língua de inversões desavergonhadas, feita para acobertar fatos e evidências, em nome de Deus, contra a experiência de todos.

É a língua que cabe a Michelle Bolsonaro balbuciar sozinha no centro do poder, véu canhestro, arremedo de protolíngua, como se possuída por um espírito que, ao contrário da magnanimidade dos orixás, já não baixa para revelar nada ou contradizê-la, mas antes para esconder a indigência e a vergonha da revelação.

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