Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Democracia não é o lugar de Deus acima de todos

Todo o mundo morre, diz Bolsonaro, em desesperado combate contra a ética e a consciência individual

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O que faz alguém defender, em nome de Deus, um governo que apelidou de liberdade o crime, de ordem a incompetência, e de justiça o aviltamento da lei? O que leva alguém a apoiar, em nome de Deus, um governo que vê na mentira a salvação, no cinismo a dignidade, e na desonestidade a honra?

Essa é uma questão que diz respeito à ética e não à moral, que se adapta a todo tipo de contradição. É o que se conclui de um livro maravilhoso que acaba de sair em português pela editora Âyiné: "Da Ilíada", de Rachel Bespaloff, numa bela tradução de Giovani T. Kurz (uma edição anterior já havia sido publicada, em 2005, pela extinta e saudosa Cotovia, de Lisboa, também responsável pelo lançamento das traduções de referência que Frederico Lourenço fez da "Ilíada" e da "Odisseia").

Jair Bolsonaro durante Marcha para Jesus em Brasília em 2019 - Adriano Machado - 10.ago.19/Reuters

Rachel Bespaloff (1895-1949) escreveu "Da Ilíada" entre 1939 e 1942, quando embarcou da França para os Estados Unidos, fugindo do nazismo. Começou a escrever esse pequeno ensaio durante um mau momento pessoal e da humanidade, procurando escapar às "ideias obsessivas", ao que parece enquanto a filha estudava a "Ilíada" na escola: "Agarrei-me a Homero. Era a coisa verdadeira, o tom, a própria ênfase da verdade".

O ensaio vai tratar precisamente da ética como "ciência dos momentos de completa angústia, em que a ausência de escolha dita a decisão". É quando parte da humanidade costuma atribuir aos deuses e ao destino o que é de sua responsabilidade.

Em Homero, deuses imperfeitos carregam a culpa da tragédia dos homens, mas a responsabilidade é sempre da humanidade. Os deuses "são causa de tudo e responsáveis por nada". A culpa deles é a irresponsabilidade. Zeus não está nem aí quando é xingado pelos homens, não vê sacrilégio na blasfêmia. Sua felicidade imprudente faz a responsabilidade recair sobre os ombros da humanidade. E é aí que incide a ética.

Os deuses gregos são "agentes provocadores" de um espetáculo no qual o homem tem a chance de mostrar sua grandeza e sua coragem. A epopeia é a superação da mesquinharia.

É diferente na relação com um Deus onipotente e inquestionável. A responsabilidade Dele tanto castiga como isenta os homens da culpa pelos arbítrios, atrocidades e pequenezas que cometem em Seu nome. "Onde a individualidade não se afirma sob aquilo que a esmaga, a responsabilidade não encontra esteio."

Bespaloff entretanto não opõe a "Ilíada" à Bíblia, mesmo se numa o homem é o único responsável pela justiça e na outra ele a espera de Deus. O que na verdade afasta uma da outra, segundo a autora, é a interpretação que, ignorando na Bíblia a "prodigiosa inspiração da poesia profética" (ou seja, sua responsabilidade humana), degenera a religião em "fervoroso messianismo místico".

Não há nada mágico ou místico nem na "Ilíada" nem na Bíblia. "Não há outro ascetismo, senão a retidão do espírito, para entrar em contato com o sobrenatural." O acontecimento no qual incide a ética é sempre incomparável. Não é possível domesticá-lo, convertê-lo em norma moral.

Ele é sempre uma provação para os homens. "A experiência ética se materializa apenas em atos que a transcendem. O que restaria dessa experiência se a poesia não testemunhasse sua realidade?"

Historicamente, tanto a "Ilíada" como a Bíblia encontram-se num lugar intermediário entre a magia dos mitos e a razão da filosofia. Nem uma coisa nem outra, é pela poesia que se realiza a "liberação da consciência individual". É a poesia que torna inteligível e representável a experiência ética.

Bespaloff também associa Homero e Tolstói, apesar das diferenças que os afastam. A guerra em um como em outro torna inestimáveis as vidas que ela consome. É o oposto do que vemos no Brasil, onde as vidas consumidas não têm valor algum. "Todo o mundo morre", pontifica o chefe da nação, em desesperado combate contra a ética e a consciência individual. A responsabilidade é de Deus.

A democracia é o regime da responsabilidade humana. Ela é resultado do debate de responsabilidades entre os homens, não da delegação da culpa para o Além, por interesses demasiado humanos.

A democracia é um ajuste de imperfeições, nunca a justificativa destas pela atribuição de perfeição a um deus inquestionável. Na democracia, a força divina está dividida na pluralidade antagônica dos homens. Não é o lugar da moral prescritiva e punitiva, mas da ética. Não é o lugar de um Deus acima de todos, mas da "humildade diante do real, diante da existência não domesticável". É aí que os homens têm afinal a chance de mostrar a que vieram e o que realmente valem.

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