Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Experiência trans esfacela certezas assim como a literatura

Quando a identidade se torna fluida, passa a ser múltipla, bastarda, complexa e contraditória

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Recentemente, uma discussão em princípio bizantina despertou a minha atenção. Era um debate em torno da expressão "pessoas que menstruam". No início achei graça naquilo.

Pelos padrões atuais, sou um homem cis, branco, gay, perplexo com muita coisa que acontece a minha volta e com a qual não tenho vontade de perder tempo, mas como insistiam no tema, a discussão se prolongava e parecia séria, com argumentos enfáticos de ambas as partes, resolvi tentar entender do que estavam falando. E não demorei para descobrir que não era nem absurdo nem simples.

Mulheres trans e travestis, atendidas no Centro de Acolhida da Prefeitura de São Paulo, ensaiam espetáculo produzido em parceria com o Teatro Oficina - Marlene Bergamo-8.dez.17Folhapress

Tenho de confessar que por um tempo, quando ouvia falar de transgêneros, só me vinham à cabeça Caitlyn Jenner e as irmãs Wachowski. E por conta dessa imagem acabei associando os transgêneros a uma falsa ideia de conformidade, fantasia infantil capitalista, ânsia de harmonia e adequação entre o corpo e o espírito, na qual nunca acreditei. Se não podemos carregar a dor da contradição que nós somos, como é possível fazer arte e para quê?

Além disso, que poderia haver de libertário em operações de troca de sexo permitidas em sociedades tão pouco libertárias (a ponto de proibir a homossexualidade) como Irã e Egito?

Aos poucos, fui entendendo que a identidade trans, ao contrário do conformismo que eu lhe atribuía, abarcava subdivisões suficientemente diversas para pôr em questão a própria ideia de identidade. E era isso, no final das contas, que estava em jogo no debate sobre "pessoas que menstruam".

Dizer "pessoas que menstruam" ou "pessoas com próstata" não significa reduzir a identidade social e política dessas pessoas ao seu corpo biológico, não significa diminuir homens e mulheres a funções fisiológicas; significa, antes e mais precisamente, recusar essa redução.

Não são apenas as mulheres que menstruam —além de serem sujeitos sociais e políticos— que devem ter direito à saúde pública dirigida a quem menstrua. Também os homens trans que menstruam —além de serem sujeitos sociais e políticos— devem ter esse direito. São categorias pragmáticas. Simples assim.

Por outro lado, a discussão de fato cria um problema para a noção de identidade como lugar, ao desvinculá-la do corpo. E talvez seja esse o maior incômodo para as lutas identitárias que têm no corpo a sua principal plataforma. A partir do momento em que a identidade se torna fluida, não binária, queer etc., é impossível evitar a interseção entre diferentes e até entre opostos. Ela passa a ser múltipla, bastarda, complexa e contraditória.

Essa é uma questão com a qual a literatura sempre lidou, contra as palavras de ordem, as regras e os juízos de valor prévios. Mais cedo ou mais tarde a literatura transborda para um lugar onde as certezas se esfacelam. É o lugar das identidades móveis.

E a questão trans, do modo como ela se encaminha na luta pelos direitos de homens e mulheres transgêneros, acaba tocando nessa situação paradoxal em que as identidades deixam de ser definidas pelo que as difere dos outros, e passam a se sobrepor, a se mesclar com o outro. Mulher com próstata, homem que menstrua.

Ao contrário do que eu pensava, as identidades trans não caminham para a adequação de um corpo em paz e harmonia. Elas incorporam o outro à procura do eu. É na interseção de opostos em princípio incompatíveis que estão a força e o desafio de uma política para além das identidades.

Na última edição da revista "Serrote", um texto do argentino Ricardo Piglia sobre as tensões entre jornalismo e literatura confronta dois modos de lidar com a realidade. De um lado, um mundo simplificado, representado pelo jornalismo, no qual "as razões permitem tomar rápidas decisões morais"; de outro, um mundo formado por "redes de sentidos múltiplos, causalidades confusas e abertas", representado pelo romance.

Se no primeiro uma simplificação compartilhada dos acontecimentos assegura a confirmação moral de caminhos já conhecidos, no segundo a experiência individual diante do novo impõe trilhas a serem desbravadas. O conforto moral já não é de nenhum auxílio para enfrentar aventuras que exigem antes coragem e esforço ético inéditos.

"O romance é um instrumento que sempre questionou esses universos fixos que se valem de estereótipos para identificar a mulher, o outro, quem quer que seja", escreve Piglia. No romance nada está dado, nada é automático, nada está garantido. Tudo tem de ser decidido pela primeira vez, incessantemente. Já não se trata do quê, mas de como. É o desafio ético que a experiência trans também exige.

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