Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu internet

Literatura que deixa de contrariar abandona diálogo com o mundo

Nos 'Ensaios' de Montaigne, o negacionismo emerge em sentido mais abrangente e literário, como abolição das contradições

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O que há em comum entre o trapaceiro, o mau perdedor e o negacionista? Entre uma deputada correndo pelas ruas com uma arma na mão, gente ajoelhada diante de quartéis, o militar incapaz de reconhecer suas incapacidades, o motoboy que avança o sinal, buzinando e xingando, porque você trocou de faixa 200 metros à frente dele, e o empresário sonegador de impostos?

Se você respondesse que, apesar de integrarem campos aparentemente diversos e classes outrora antagônicas, são todos eleitores da extrema direita, provavelmente não estaria errado. Mas o mais correto seria dizer que nenhum deles suporta a contrariedade. Não suportam a lei (a lei vale para os outros) nem o real. E, nesse sentido, têm coisas em comum com muita gente.

Apoiador de Jair Bolsonaro participa de manifestação golpista na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Ueslei Marcelino - 30.nov.22/Reuters

Vencidas as eleições, fui buscar nos "Ensaios" de Montaigne um pouco do bom senso que a cacofonia inercial do bolsonarismo insiste em negar. E aí o negacionismo ganha um sentido mais abrangente e literário: é a abolição das contradições.

No capítulo "A cólera", o filósofo cita uma anedota relatada por Sêneca a propósito do jantar entre um orador suscetível às emoções fortes e um homem que, para não o contrariar, concorda com tudo o que ele diz. O orador acaba explodindo, de qualquer jeito, colérico: "Discorde de alguma coisa, pelo amor de Deus, para que sejamos dois!".

A contradição é a condição da companhia, do diálogo, do contato com o outro. Sem contradição, jantamos sós. Não há conversa nem, em princípio, literatura. A menos que o escritor, como o conviva do jantar citado por Sêneca, seja (ou queira ser) eco e espelho não exatamente do leitor, mas do que o leitor quer ser ou acha que é. É aí que mora o diabo.

Uma literatura da identidade e do reconhecimento, por mais agradável e natural que pareça, é um paradoxo cujo efeito tenderá a ser o oposto do bem que ela promete. Se a literatura deixa de contrariar, se deixa de ser diferença, é porque já faz parte de uma relação que não supõe nem diálogo nem confronto com o mundo.

A ideia de uma literatura que não ofende nem fere, antes abraça e afaga, fingindo que traz o mundo em si, ganhou impulso —com a cumplicidade das vendas, é claro— no rastro da mudança de paradigma operada pela internet: com o mundo ao alcance das mãos, agora o que te contraria você deleta, cancela. Uma relação narcisista de espelhamento —o mundo como afirmação de si e da autoimagem— suplanta a lei que, ao contradizer a fantasia onipotente infantil, deveria formar o adulto, ser social, cidadão com deveres e responsabilidades.

O narcisismo está associado à infância, mas a ficção não tem necessariamente a ver com um mundo de fantasia. Contra as ideias feitas, ela também trabalha no campo da verdade, que é o campo das contradições.

Ao contrariar a presunção do sujeito de uma realidade fantasiosa e onipotente que lhe corresponda, a ficção abre o campo da dúvida, do outro, do diverso, pela multiplicidade de perspectivas contraditórias não só sobre o mundo, mas também sobre a suposta autonomia e integridade de quem narra ou fala.

Montaigne diz que a mentira, ao contrário da verdade, que é uma só, tem 100 mil faces e um campo indefinido que nos impede de tomar por verdadeiro o oposto do que diz o mentiroso. Por outro lado, não há mentira sem algum tipo de crença ou certeza. Não há mentira na dúvida. O impostor trabalha contra a contradição e a dúvida. Não há como distinguir a verdade da mentira num mundo sem contradição. Quanto menos confrontado com as contradições, mais vulnerável às crenças estará o espírito.

Montaigne também associa o monstruoso à diversidade, ao espanto com o desconhecido e o novo. "Chamamos ‘contranatura’ o que surge contra os costumes", o que não reconhecemos, o que não é espelho. "Contranatura" é na verdade o que nos contradiz quando nos assumimos como padrão da natureza, norma, gente de bem, eleitos de Deus ou o que quer que seja.

A literatura traz o monstro que nós somos, diversos e desconhecidos da nossa presunção. É por isso que ela precisa agir numa margem estreita de tensão em que a contrariedade, o prazer e a surpresa de descobrir-se outro se sobrepõem e se confundem. E que é o contrário da onipotência infantilizada sobre a qual se ergue e se sustenta a autoimagem da extrema direita.

Se há uma força política da literatura, ela está menos na afirmação heroica de si, no alívio de contos edificantes de superação, por mais comovedores e bonitos que sejam, do que na ambiguidade do herói, na coragem e no desprendimento de se pôr à prova e em dúvida.

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