Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Num 'Toy Story' literário, meus livros têm dado festinhas à noite

Podendo se aglomerar à vontade, eles estão se divertindo mais do que eu, e a coisa aqui virou Réveillon do Neymar

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Num primeiro momento, botei a culpa nos gatos. Depois, no vento encanado. Afinal, como explicar, todas as manhãs, o estranho fenômeno dos mais diferentes volumes sendo encontrados pelo chão, misteriosamente estatelados?

Num cômodo fechado a sete chaves, como era possível? Depois de muita ponderação, a ficha caiu: meus livros têm dado festinhas à noite.

Ilustração com dois livros em fundo de papel com marcas da passagem do tempo e carimbos. Um dos livros é 'Razão & Sensibilidade', ele está espantado com uma das mãos em sua capa, e o outro é '50 Tons de Cinza', ele está abrindo suas páginas bem na frente de 'Razão & Sensibilidade'.
Marcelo Martinez/Folhapress

Claro, ninguém está preparado para lidar com um “Toy Story” literário rolando numa estante até então bem-comportada. Tinha para mim que a biblioteca aqui de casa era uma espécie de tarde na ABL, com imortais sossegados, tomando chazinho, imersos em sua altíssima cultura.

Mas a contar pela fanfarronice de certos vultos da literatura, a coisa aqui virou Réveillon do Neymar. E o pior: por minha culpa.

Isolada do mundo, impossibilitada de ir às minhas próprias aglomerações, há meses reviro livros. Sempre me orgulhei de não arrumá-los por ordem alfabética ou cor de lombada.

O problema é que meu método serviu de gatilho para essa esbórnia clandestina.

Eu partia do pressuposto de que bibliotecas são como Las Vegas: o que acontece nas prateleiras fica nas prateleiras. E confesso que misturei casais, na esperança de um troca-troca. Romeu com Bibiana, Julieta com Capitão Rodrigo, Mr. Darcy com Bruna Surfistinha. Sarau ou suingue? Organizando direitinho, tanto faz.

Num quarteto tipo “Sex and the City”, Madame Bovary, Anna Kariênina, a Dama das Camélias e Maria Eduarda de “Os Maias” trocam ideia sobre seus boys probleminha. Enquanto Otelo e Bentinho, doídos pela cornitude imaginária, enchem a cara e cantam “ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire”, tropeçando no poeta.

Entre biografias, a de dom Pedro 2º vive com a da condessa de Barral, pois amante também é família. E em vez de cuspir sangue entre românticos, o virginal Álvares de Azevedo troca ideia com Carlos Zéfiro, junto aos quadrinhos eróticos do Milo Manara.

Só de raiva, na seção política, o “Febeapá” de Stanislaw Ponte Preta está ao lado de um livro sobre o governo Bolsonaro. Até o palhaço assassino de Stephen King tenta sair de perto (não à toa, a obra que mais encontro caída). E em meio aos horrores, o dicionário Houaiss fica sem palavras.

Arrumação concluída, livros catados do chão, sinto-me dona de uma epopeia universal. Porém, há sempre quem pergunte: “Não era mais fácil ter tudo num Kindle?”.

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