Havia duas coisas que Odemar não aceitava: pagamento em cartão e cliente que saísse sem pegar uma balinha. Há mais de 30 anos tosando marmanjos do bairro, ele não oferecia cerveja ou pomada modeladora . A cortesia ali era à moda antiga, baseada no preço módico, no sorriso e na espanada caprichada de pescoço.
Das primeiras vezes que levei meu filho, ele mal alcançava a cadeira. Odemar construía uma torre de almofadas e o colocava no topo, feito um rei.
Ser mãe de menino me fez atentar para essa relação de afeto que os homens criam com seus barbeiros, por força do hábito e da confiança. Afinal, trata-se de entregar sua cabeça a alguém que conhecerá as suas falhas, bem como as entradas que vão aumentar.
Cada cliente tem suas especificações. Mais curto. Mais comprido. Pro lado. No meio. Igual ao Justin Bieber. Igual ao Neymar. "O tempo passa, cabelo cresce", Odemar repetia, encorajando. "Vambora."
Eu levava referências, mas só para constar. Odemar cortava como lhe desse na telha e não sabia reproduzir depois. Talvez por confundir as crianças. Ou, como prefiro acreditar, pela alma inquieta de artista.
Um dia, já indo embora, perguntamos se ele fazia desenhos à navalha. O objetivo era copiar o look de um youtuber. "Hmmm, taí. Na próxima vou tentar." Senti sinceridade, porém não pude comprová-la. A pandemia estourou e quem tesourou a juba do guri fui eu.
Minhas metas: manter o corte do Odemar e não arrancar nenhuma orelha. Desenhei uma estrela. Por sorte, meu filho é gente boa. "Ficou ruim não, mamãe. Mas depois do coronavírus me leva de volta?"
Quando o comércio reabriu, correu a notícia de que Odemar havia se aposentado. O moleque aceitou outro cabeleireiro, mas suei na argumentação. "A estrela dele não sai torta."
Só sei que o novo visual causou. E, na porta da escola, passei esse novo contato aos pais, ainda lastimando a aposentadoria do ídolo. "Peraí, isso é o que a gente tá contando às crianças. Você não soube?" Odemar não tinha parado de trabalhar. Ele havia sido morto numa tentativa de assalto.
No caminho para casa, meu filho foi contando do seu dia. Eu só balançava a cabeça, tentando não chorar. Lembro-me de acariciar sua nuca. Logo, logo até aquela estrela ia desaparecer. Como acontece com as lembranças dos pequenos. "O tempo passa, cabelo cresce", Odemar diria. Vambora.
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