Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bia Braune
Descrição de chapéu
maternidade

O tempo passa e o cabelo cresce, mas como dar uma má notícia a uma criança?

Ser mãe de menino me fez atentar para essa relação de afeto que os homens criam com seus barbeiros

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Havia duas coisas que Odemar não aceitava: pagamento em cartão e cliente que saísse sem pegar uma balinha. Há mais de 30 anos tosando marmanjos do bairro, ele não oferecia cerveja ou pomada modeladora . A cortesia ali era à moda antiga, baseada no preço módico, no sorriso e na espanada caprichada de pescoço.

Das primeiras vezes que levei meu filho, ele mal alcançava a cadeira. Odemar construía uma torre de almofadas e o colocava no topo, feito um rei.

Ser mãe de menino me fez atentar para essa relação de afeto que os homens criam com seus barbeiros, por força do hábito e da confiança. Afinal, trata-se de entregar sua cabeça a alguém que conhecerá as suas falhas, bem como as entradas que vão aumentar.

Ilustração feita em linhas brancas sobre fundo preto. No centro, há uma cadeira de barbeiro vazia e, do lado esquerdo da cadeira, há um espelho retangular e uma bancada presos na parede. Uma tesoura, um pente e um porta-treco estão em cima da bancada. A única parte colorida da ilustração é uma janela com céu estrelado azul que está do lado direto da cadeira. Há uma placa pendurada no vidro da janela com o aviso "FECHADO", é possível ver alguns prédios do lado de fora também.
Publicada neste domingo, 31 de outubro de 2021 - Marcelo Martinez

Cada cliente tem suas especificações. Mais curto. Mais comprido. Pro lado. No meio. Igual ao Justin Bieber. Igual ao Neymar. "O tempo passa, cabelo cresce", Odemar repetia, encorajando. "Vambora."
Eu levava referências, mas só para constar. Odemar cortava como lhe desse na telha e não sabia reproduzir depois. Talvez por confundir as crianças. Ou, como prefiro acreditar, pela alma inquieta de artista.

Um dia, já indo embora, perguntamos se ele fazia desenhos à navalha. O objetivo era copiar o look de um youtuber. "Hmmm, taí. Na próxima vou tentar." Senti sinceridade, porém não pude comprová-la. A pandemia estourou e quem tesourou a juba do guri fui eu.

Minhas metas: manter o corte do Odemar e não arrancar nenhuma orelha. Desenhei uma estrela. Por sorte, meu filho é gente boa. "Ficou ruim não, mamãe. Mas depois do coronavírus me leva de volta?"

Quando o comércio reabriu, correu a notícia de que Odemar havia se aposentado. O moleque aceitou outro cabeleireiro, mas suei na argumentação. "A estrela dele não sai torta."

Só sei que o novo visual causou. E, na porta da escola, passei esse novo contato aos pais, ainda lastimando a aposentadoria do ídolo. "Peraí, isso é o que a gente tá contando às crianças. Você não soube?" Odemar não tinha parado de trabalhar. Ele havia sido morto numa tentativa de assalto.

No caminho para casa, meu filho foi contando do seu dia. Eu só balançava a cabeça, tentando não chorar. Lembro-me de acariciar sua nuca. Logo, logo até aquela estrela ia desaparecer. Como acontece com as lembranças dos pequenos. "O tempo passa, cabelo cresce", Odemar diria. Vambora.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.