Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

Na cabeça dos atrasados, falta sempre um minutinho para qualquer coisa

Inventei que não existe melhor ou pior, só duas categorias de pessoa: as espaciais e as temporais

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Começa com um pi-pi-pi. "Bom dia, flor do dia." Depois, um xilofone sombrio. "Vai acordar não?" Um sonar de navio. "Êi, tá viva?" E, por fim, o som de uma buzina, uma bateria e uma bigorna. "Levanta, desgraçada!"
Como toda pessoa impontual, sou escrava de alarmes de celular. E de forma tão indigna que os batizo como se fossem recados para mim. "Hora de sair de casa." Dez minutos depois: "Hora de sair de casa MESMO". Mais 15: "Hora de mentir ao chefe e fingir que estou presa no trânsito".

Descobri que meu relógio biológico tem pilha fraca cedo na vida. Toda manhãs, já tendo que ter ido pra escola, via na TV o Bozo perguntar as horas ao Papai Papudo. Inexorável feito um deus Cronos da programação infantil, ele respondia: "São cinco e 60. Falta um minuto pra daqui a pouco". Parecia uma sentença.

(Sim, na cabeça dos atrasados, falta sempre um minutinho para qualquer coisa.)

Na ilustração de Marcelo Martinez, em estilo retrô e usando as cores laranja e roxo, o personagem "Atrasildo, o Atrasado" – da clássica propaganda de TV do carnê do Baú nos anos 1970  – olha seu relógio enquanto corre, apressado.
Marcelo Martinez/Folhapress

Acostumada à superioridade moral dos cumpridores de horário, inventei que não existe melhor ou pior, só duas categorias de pessoa: as espaciais e as temporais. Pertencendo à primeira delas, estaciono em vagas minúsculas e tiro medidas exatas só no olho. Ando sem mapa e tenho a mira de um sniper para bolinhas de papel. Falta-me, porém, aquela noção de "desculpa, fiquei de ligar em cinco minutos, passaram-se cinco dias".

Contudo, não é que minha teoria faz sentido? Segundo a BBC, nós procrastinadores nascemos com uma percepção cronológica própria. Expandida. Enquanto os pontuais possuem uma habilidade neurológica maior para estimar a passagem do tempo e planejar ações futuras. Com boa vontade e deadlines, inclusive, atrasados podem abandonar essa vida de crime que é ter de matar a mesma tia várias vezes para justificar entregas fora do prazo.

Redimida por essa esperança, comuniquei aos amigos que acertaria de vez meus ponteiros. Mas sabe quando eles me apoiaram? Nunca. "Você é nossa adorável esquisita. A atrasilda oficial." "Demora tanto a chegar que a gente já acha que nem vem..." "Mas quando vem, que surpresa! Quanta alegria!".

Puxa, que daora. Os pontuais são realmente admiráveis. Generosos. "É, mas tem o seguinte também: se começar a chegar cedo demais, seremos obrigados a passar muito tempo com você. Melhor não." E assim, entre humilhada e perdoada, continuo brindando a todos com minha semipresença impreterivelmente tardia. Podendo criar mais e mais alarmes, agora gentis. "Atrasa, sua linda."

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