Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

'O Beijo', de Klimt, abala e faz pensar que toda obra de arte pertence ao mundo

De quadro de museu a guarda-chuva de camelô, objetos artísticos são de quem quiser e precisar

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Outro dia peguei um táxi para fugir de um temporal. E estando carregada de papéis, o motorista me estendeu um guarda-chuva. "Fica com ele, esqueceram aqui no carro." Perguntei se nenhum passageiro o pediria de volta. "Esse é bonito, mas relaxa. Guarda-chuvas são do mundo."

Realmente não se tratava do modelo comum, preto e sóbrio, porém estampado com "O Beijo" de Gustav Klimt. Esse mesmo, o da pintura que vale centenas de milhões. Uma das mais importantes da história da arte. E que também era o mouse pad do meu chefe. A caneca em que a vizinha tomava café. O chaveiro do eletricista. E o quebra-cabeça de 2.000 peças que um tio desistiu de montar. "Tem amarelo demais, complica."

Na colagem digital de Marcelo Martinez, os personagens da tela "O beijo", de Gustav Klimt, se beijam sob um forte temporal, protegidos por um guarda-chuvas com a estampa da famosa tela.
Marcelo Martinez/Folhapress

Nenhuma dessas variações utilitárias do quadro mais pop da secessão vienense me perturbava. Aliás, nos tempos da faculdade, li com gosto Walter Benjamin e "A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica".

Sentada inclusive numa almofada com o casal de amantes, refleti sobre valores de culto e exposição, essência e autenticidade. Afinal, se algo existe, sua imagem pode virar camiseta e filtro do TikTok. Mas e a aura do original?

Em 2012, decidi tirar a prova. Chegando a Viena, comprei ingresso para ver "O Beijo" com meus próprios olhos. Julgava-me preparada emocionalmente, pois visitar a Mona Lisa no Louvre já havia sido aquele choque de realidade: pequena demais, coberta demais por um vidro. Uma multidão de turistas esperando algo mais grandioso, à altura dos subprodutos que consumiu a vida inteira. Contudo, mal sabia eu.

Os salões do museu Belvedere eram amplos e tinham telas por todos os cantos. Com um mapa na mão, procurei o par que alguns diziam ser o próprio Klimt e sua companheira Emilie Flöge, outros interpretavam como Apolo e Dafne. Até que, numa virada impactante de corredor, eu o avistei. Imenso e quadrado. Suas folhas de ouro reluzindo com o sol que entrava pelas janelas.

Só que ao chegar bem perto para observar detalhes, encontrei o que nunca havia enxergado antes: a figura feminina não parecia corresponder ao beijo. O que tantas vezes vi reproduzido como amor e entrega, ao vivo parecia um adeus. Embargada pela surpresa, não contive as lágrimas. E o mais irônico de tudo: era terminantemente proibido fotografar o quadro.

Jamais conheci quem tivesse a mesma impressão. E, se por um lado me abalou o anticlímax do retrato, por outro me comovi com seu poder atordoante. Inesquecível. Toda obra de arte, sim, é do mundo. Seus objetos, de quem quiser e precisar. Tanto que, quando a chuva estiou, deixei o guarda-chuva num banco de praça e segui meu caminho.

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