Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Não consigo apagar os que se vão, da minha memória ou do meu celular

Nada nos prepara para certas ausências, principalmente porque são duas, na prática: a física e a digital

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Semana passada, um conhecido morreu de forma trágica, o que gerou imensa comoção e o compartilhamento de ternas homenagens pelas redes sociais. Somos adultos, sim. Sabemos que pessoas morrem e que, com o passar do tempo, tendem a 
morrer com mais frequência.

Contudo, nada nos prepara para certas ausências, principalmente porque são duas, na prática: a física e a digital.

Confesso ter dificuldade para o luto online. Até hoje, não consigo desfazer amizade com duas grandes amigas. Ambas morreram há mais de cinco anos e, é claro, eu poderia clicar na opção "deixar de seguir".

Ilustração com efeito pixelizado. No centro da imagem, há uma estrela branca, uma linha horizontal branca embaixo e uma cruz branca por último. Na margem inferior centralizada, há uma rosa vermelha com duas folhas verdes. O fundo é todo preto.
Ilustração publicada em 16 de maio de 2022 - Marcelo Martinez

Mas como encará-las como não pessoas? Os avatares resistem e, por vezes, passeio por suas publicações. Algo me escapa entre os retratos, porém segue sendo vínculo. Talvez últimas palavras, numa 
legenda feliz do Instagram.

Ao vasculhar minha caixa de emails, é comum que um termo da busca traga por acaso meu pai e nossa antiga troca de mensagens. Vou relendo tudo embargada de emoção, reconhecendo seu modo de se expressar. Ao contrário das cartas, que amarelam, o que corre pela tela é um fluxo vivo de pensamento, como se conversássemos de novo a partir daquelas linhas. Sua voz grave ecoando na minha cabeça.

Aliás, vozes. Eu, que detesto longos áudios de WhatsApp, daria tudo por uma coleção específica deles. Com os resmungos, exageros, fofocas e o jeito inesquecível como minha mãe explicava em detalhes, pronunciando perfeitamente vogais e consoantes, o método ideal para se tirar mancha de sofá.

Seria a vida digital, então, a verdadeira vida após a morte? Não a dos espíritos de Allan Kardec ou dos grandes vultos da humanidade, que eternizam seus legados, mas essa permanência acessível e cotidiana. O além enquanto lugar na nuvem, 
passível de emojis sinceros.

Afinal, podemos ir para o céu, para o inferno, inclusive para o nada. Certeza, mesmo, apenas a dessa reencarnação promovida não por um Deus, mas pelas operadoras de celular: quando o número de telefone enfim muda de dono e nos deparamos com a foto de um estranho entre nossos contatos. Mero invólucro de pixels.

É por isso que tantos perfis continuam no ar, feito memoriais. Deles surge toda sorte de atualizações, como votos de saudade e feliz aniversário. Memórias datadas de "há tantos anos, neste dia".

Deixo lá meus likes como se depositasse pedrinhas no jazigo dos entes queridos. Seguem mortos, mas não desconectados da nossa realidade. Até que chegaremos, juntos, ao dia do Delete Final.

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