Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Roteirismo crônico é o que faz com que inventemos cinema no nosso dia a dia

É o caso dos que já gritaram 'eu sou o rei do mundo' na proa de um barquinho mequetrefe

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Não, imagina. Logo você, pessoa discreta, de hábitos regrados. Pai de família, mulher de negócios, assinante de jornal. Tudo bem, não tem problema —quem sou eu para julgar? Vim apenas informar mesmo: em alguma hora, todos testaremos positivo para roteirismo.

"Maldita hora em que vim ler esta coluna, não a do Drauzio Varella. Isso pega?" Antes de esclarecer tal condição, inócua porém altamente lúdica, afirmo que ela já está disseminada entre nós. Desde antes da Netflix, das novelas da Janete Clair, dos comerciais de desodorante, das epopeias gregas e dos clipes da MTV.

Roteirismo é uma espécie de calculismo poético, capaz de transformar situações banais em cenas —ainda que, na maioria das vezes, só dentro da sua cabeça. A OMS não classifica como patologia, mas alguns sintomas clichê são pedir um drinque igualzinho ao James Bond ("batido, não mexido") ou derrubar livros no chão, para o crush catar.

Ilustração mostra elevador entreaberto. Dele sai uma mão segurando um chinelo de dedo no chão. Ele pensa "Indiana salva seu chinelo de novo"
Ilustração - Marcelo Martinez

"Não sou roteirista, mas dentista. O que eu tenho com isso?" Tudo, posto que qualquer um é roteirista da própria vida. A diferença é que certas pessoas incubam esse padrão comportamental, enquanto outras cavam oportunidades ideais para a prática emocionada. É o caso dos que já gritaram "eu sou o rei do mundo" na proa de um barquinho mequetrefe ou "eu sou rica" ao ver o salário bater na conta.

"Isso não faz sentido." Tem certeza? No meio de um chilique, quem nunca cogitou a emoção de espatifar um bibelô que atire o primeiro bibelô.

Amantes que sofrem de roteirismo —sofrem, não: regozijam-se— encontram explicações perfeitamente razoáveis para entrar pela janela, com uma rosa entre os dentes. Brigam e depois correm para o abraço, num slow motion imaginário.

Sem escrúpulos, são capazes de adaptar falas clássicas de filme no meio de uma conversa ("nós sempre teremos Cuiabá") ou deixar um verso de Sandy e Junior escrito num para-brisa imundo. Olha o que o amor te faz: isso é roteirismo.

Convictos ou não, nós, praticantes crônicos, seremos incompreendidos. Tachados de esquisitões ou pior: de "figuraças". Mas como a imaginação não tem limites e tudo no roteirismo é possível, acolheremos até os chatos e desanimados.

Afinal, podendo ter senso de humor, o sujeito prefere ser blasé? Que delícia: um anti-herói.

Sempre haverá, contudo, quem consulte a previsão do tempo. E, quando começar a chover, puxará a criatura amada para o lado de fora, de caso pensado. "Vem, me beija assim, vai ser lindo." E será mesmo.

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