Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

Tio Vando era bom em tudo, menos em ter um emprego fixo

Ele administrava talentos adoravelmente aleatórios, como a caligrafia perfeita e a habilidade de picar couve fininha

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Plateia lotada. Sob holofotes, surge um coach de empreendedorismo. No que ele aperta um controle remoto, um slide preenche o telão: "Vanderley não quer nada com A Hora do Brasil" —e uma foto do meu tio Vando, sentado de pernas cruzadas, descascando laranja.

Esse seria um TED Talk de milhões, pena que titio não viveu para se tornar influencer de carreiras. Casado com a irmã do meu pai, era um agregado incompreendido, alvo de "speeches desmotivacionais off the record alheios", também conhecidos como "fofoca". "Aquelas mãos ali, hein? Macias demais. Nunca pegaram no pesado!"

Na ilustração de Marcelo Martinez, um personagem apresenta sua palestra no evento TIO, uma paródia do famoso TED (Talks). Ele está em um palco iluminado e o telão exibe um relógio com ponteiros se mexendo para o lado contrário.
Ilustração para a coluna de Bia Braune, na Ilustrada de 18 de julho de 2022 - Marcelo Martinez

Mentindo o povo não estava. Tio Vando não era o tipo de pessoa que madrugava já dentro do ônibus, a caminho do batente. Tinha seus dindins que ajudavam nas despesas, mas carteira assinada ficou devendo.

Tia Zuma não se incomodava em sair para trabalhar, deixando o marido em casa. Quando o falatório se adensava, repetia seu bordão: "Se fosse o contrário, ninguém estranharia". Desde que ele continuasse consertando a máquina de lavar e assobiando segredinhos de casal ao pé do ouvido, tudo certo.

Um MBA em gestão talvez lhe fosse útil, pois tio Vando administrava muitos talentos. Skills adoravelmente aleatórios, como a caligrafia perfeita e a habilidade de picar couve fininha.

Aprendeu grego sozinho, lendo dicionários. Escreveu e ilustrou um manual de sinuca que é obra de referência entre campeões. Aperfeiçoou a técnica de cortar panetone na horizontal. Por um Natal, deu certo. No seguinte, voltamos ao tédio das fatias verticais.

Caricaturista nato, desenhava a família toda com narigões e testonas —mas como só eu ria, isso selou nossa cumplicidade. Fez para mim uma caixinha de música com uma galinha que botava um ovo ao final da canção e um relógio de parede que funcionava ao contrário, igual à sua cabeça.

Um dia, descobriram que sua falta de viço para tarefas braçais era problema cardíaco. Trocaram-lhe, então, uma válvula. Sempre que fazia silêncio, ouvíamos o tique-taque metálico do peito. Tio Vando se converteu num metrônomo, muito útil para minhas aulas de piano.

Nem nos estertores esse CEO da vida desapontou, em termos de excelência. Ao contar uma piada depois do almoço, no mais perfeito tempo de comédia, caiu duro na hora do punchline. Os amigos aplaudiram, às gargalhadas —até se darem conta. Havia sido uma legítima killer joke, à altura de seu job final.

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