Bruno Gualano

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bruno Gualano
Descrição de chapéu Coronavírus Prevent Senior

Transgressões éticas no estudo da Prevent Senior

Violação dos preceitos éticos põe em risco a saúde e a dignidade do voluntário, quebra a confiança no pesquisador e gera suspeição sobre o real propósito da ciência

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A partir de 1951, por duas décadas a fio, Dr. Albert M. Klingman (Universidade Pensilvânia) realizou inúmeros experimentos dermatológicos envolvendo prisioneiros da penitenciária Holmesburg (EUA). Ao cabo, as pesquisas renderam-lhe fama e fortuna; às cobaias, uma vasta sorte de sequelas, jamais reparadas pela Justiça. O causo é contado no livro “Acres of Skin” (1998), título que se baseia numa expressão atribuída ao próprio cientista, que em sua primeira visita à Holmesburg, teria se fascinado com os “acres de pele” disponíveis para suas experiências.

A prodigiosa história da ciência é fustigada por episódios de transgressões éticas como esse, que encontraram seu ápice nos abjetos experimentos nazistas. Da repulsa social aos abusos perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial em nome do avanço do conhecimento, surge o Código de Nuremberg (1947) –marco civilizatório que circunscreve a conduta de cientistas a um arcabouço de dez princípios éticos de proteção à saúde e à dignidade do participante de pesquisa. O Código é tido como pedra fundamental da Declaração de Helsinki (1964) e todos os outros manuais de boas práticas subsequentes que instruem os experimentos com humanos.

As balizas éticas que norteiam a pesquisa clínica representam, historicamente, um enorme avanço humanitário que inadmite retrocessos, ao menos em países minimamente civilizados –seria o caso do atroz Brasil bolsonarista?

Fachada do hospital Sancta Maggiori, da Prevent Senior, em São Paulo - Rubens Cavallari - 20.mar.2020/Folhapress

A resposta dependerá do tamanho da grita caso se comprovem as infrações éticas cometidas na condução do fatídico estudo da Prevent Senior, que investigou centenas de usuários da operadora submetidos a drogas mundialmente desacreditadas para o tratamento da Covid-19.

Sob o prisma metodológico, o estudo é terrivelmente ruim. Se tanto, serviria para ilustrar como não se deve testar um medicamento, como arrematou Natalia Pasternak. Mas não gostaria de gastar minhas linhas cobrindo as falhas cientificas do trabalho, especialmente porque o assunto “cloroquina e afins” é insosso e superado. Prefiro me debruçar sobre as possíveis faltas éticas da pesquisa e suas consequências. Vamos ao contexto.

Questionado pela imprensa por que seu trabalho não havia sido publicado em periódico científico, Fernando Parrillo, diretor da Prevent, saiu-se com esta: “não se tratava de um estudo científico, era um acompanhamento observacional de pacientes”. A afirmativa é cinicamente contraditória, pois o “acompanhamento observacional de pacientes” nada mais é que uma modalidade de estudo científico que, como tal, submete-se a normas éticas consolidadas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) –órgão máximo de regulamentação de pesquisas em humanos no Brasil. A tentativa de eufemizar a natureza científica do estudo, ou, ainda pior, negar sua existência, soa como estratagema para relaxar a observância dos direitos dos voluntários da pesquisa, entre os quais se destaca o da autonomia de participação.

Parrillo alega que os pacientes concordaram livremente em participar (a ver). Mas isso não bastaria. O consentimento do participante deve ser livre, mas também esclarecido. A decisão autônoma pressupõe capacidade de escolha voluntária, ou seja, livre de coerção ou manipulação por parte de terceiros, e informação suficiente e compreensível para embasá-la. Se riscos associados ao tratamento foram omitidos, ou seus potenciais benefícios foram inflados pelos pesquisadores –como dão conta alguns relatos–, estaria configurada falta de ética grave.

Também há de se aprofundar a investigação acerca de outros supostos desvios éticos igualmente graves, que incluem o início do estudo antes da aprovação da CONEP, alterações no protocolo de pesquisa sem a anuência da comissão, manipulação de prontuários, omissão de eventos graves (mortes) e fraude de resultados.

É suficientemente melancólico imaginar que o festival de barbeiragens e ardis visto neste estudo advém de imperícia e/ou negligência de um grupelho de atabalhoados que ingenuamente esperavam “mudar a trajetória da medicina", sem saber sê-lo impossível ao largo da ciência. Caso se comprove que a barafunda também resultou de ideologia fanática, proselitismo e/ou objetivos mercantis, tanto mais grave deverá ser a punição.

Quando consentem participar de um estudo, as pessoas confiam sua integridade física e moral aos cientistas. Sob uma perspectiva individual, a violação dos preceitos éticos põe em risco a saúde e a dignidade do voluntário. Num contexto ampliado, quebra a confiança no pesquisador e gera suspeição sobre o real propósito da ciência. A comunidade científica precisa estar atenta ao desenrolar do caso, pronta para repudiar com veemência qualquer tentativa de burla ética que nos retroceda a um passado bárbaro que se quer enterrado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.