Bruno Gualano

É professor do Centro de Medicina do Estilo de Vida da Faculdade de Medicina da USP. Também é autor de 'Bel, a Experimentadora'

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Bruno Gualano

Negacionismo nutricional

O Guia Alimentar para a População Brasileira sofre constantes ataques pela indústria e seus lobistas

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Paleo, cetogênica, low-carb, low-fat, hiperproteica, mediterrânea, anti-inflamatória, dos pontos, do tipo sanguíneo, vegetariana. Não faltam candidatas ao posto da dieta ideal —assunto que rende um debate acalorado nos consultórios, redes sociais e academia. Em contrapartida, caminha-se celeremente para um consenso do que deveria ser evitado: o alimento ultraprocessado.

Ultraprocessados são formulações industriais com alto teor de sal, açúcar, gordura, além de um sem número de aditivos que travam a língua de cidadãos que não detêm um PhD em Engenharia de Alimentos. A ingestão elevada desses alimentos está associada a riscos aumentados de diversas doenças crônicas, obesidade e morte prematura.

É o que motiva o Guia Alimentar para a População Brasileira desencorajar o consumo regular de bolachas de pacote, cereais matinais açucarados, macarrão instantâneo, sucos em pó, refrigerantes, salgadinhos, embutidos, entre outras pseudocomidas.

Faz sentido? Naturalmente, não para a indústria dos ultraprocessados...

Homem mais velho está totalmente cercado, em quiosque, por alimentos ultraprocessados
Quiosque com alimentos ultraprocessados, em Santiago, no Chile - 19.jan.2018 - Victor Ruiz Caballero/The New York Times

O guia –exaltado mundialmente por profissionais da saúde, formuladores de políticas públicas e cientistas— sofre com constantes ataques orquestrados pela indústria e seus lobistas (incluindo cientistas). As críticas, no entanto, são tão infundadas que beiram o negacionismo.

Embora diversos estudos populacionais de observação apontem, com clareza, a associação entre o consumo de ultraprocessados e piores índices de saúde, detratores do guia costumam lanças dúvidas sobre a causalidade dessa relação. De fato, como já discutido aqui, estudos observacionais no campo da alimentação são passíveis de vieses, muitos dos quais só podem ser efetivamente sanados por ensaios clínicos controlados.

Com isso em mente, cientistas do NIH (National Institutes of Health) —a principal agência de fomento à pesquisa médica dos Estados Unidos— realizaram um trabalho inovador sobre o tema. A pesquisa foi conduzida numa unidade metabólica, onde os participantes residiram ao longo de todo o estudo, possibilitando aos pesquisadores um rígido controle experimental.

No estudo, pessoas com peso estável foram submetidas a duas dietas distintas: uma rica em ultraprocessados e outra, em alimentos não processados. Ambas foram compostas por refeições cuidadosamente planejadas, que continham a mesma quantidade de calorias, açúcar, sal, fibras, gordura e proteína. Os participantes experimentaram cada uma das dietas por 2 semanas, em ordem aleatória, e foram orientados a comerem tanto quanto desejassem.

Quando expostos à dieta composta por ultraprocessados, as pessoas consumiram cerca de 500 kcal por dia a mais do que sob à dieta não processada. A imersão na culinária ultraprocessada também rendeu cerca de 1 Kg na balança, ao passo que o "detox" proporcionado pela dieta rica em alimentos in natura eliminou cerca de 1 Kg dos participantes.

Por mecanismos que ainda desconhecemos por completo, alimentos ultraprocessados parecem burlar nossos sistemas centrais de controle do apetite, resultando em ingestão energética exagerada, acúmulo de peso corporal e seus conhecidos efeitos deletérios à saúde. Por isso, como concluem os autores do estudo citado e recomenda o nosso guia, limitar o consumo de ultraprocessados representa uma importante estratégia para combater a obesidade.

A ciência produz evidências, mas não dita os rumos do mercado. Ultraprocessados são baratos, duram nas prateleiras e, sem o freio da saciedade ou do impulso da fome, são consumidos em grandes volumes. Não seria o apelo da saúde coletiva suficiente para convencer a indústria a reformular seus produtos, abrindo mão de generosas margens de lucros.

Até aí, jogo jogado, como diria o mestre Elio Gaspari. Se o dinheiro manda, a indústria obedece. Em diversos países, políticas de taxação de ultraprocessados —em particular das bebidas açucaradas— foram efetivas em reduzir seu consumo.

No Brasil, se refrigerantes e sucos com adição de açúcar fossem taxados em 20%, como pede a OMS, estima-se que a prevalência de obesidade recuaria em 11,8%. É hora de considerarmos seriamente essas medidas.

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