Candido Bracher

Administrador de Empresas formado pela FGV. Foi executivo do setor financeiro por 40 anos.

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Candido Bracher
Descrição de chapéu sustentabilidade África

Como o mundo realmente funciona

Seremos capazes de sacrifícios presentes em troca de benefícios no futuro distante?

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Há poucas semanas, quase simultaneamente, jornais internacionais informavam sobre a decisão do governo congolês de licitar extensas áreas florestais para a exploração de petróleo e sobre a onda de calor na Europa, que registrava temperaturas recordes em vários países. Poucos dias depois, uma enchente fazia mais de 35 vítimas no estado de Kentucky, nos EUA.

O absurdo da situação fica evidente ante o conhecimento generalizado de que: 1) as ondas de calor e as inundações são um fenômeno crescente –nove entre os dez anos mais quentes da história ocorreram desde 2005– provocado pelo efeito estufa ocasionado pela emissão de dióxido de carbono e outros gases (CO2e) na atmosfera, e 2) a decisão do Congo impacta duplamente essas emissões: pela degradação florestal das áreas licitadas, que reduz o sequestro de CO2e, e pelas emissões a serem produzidas pelo petróleo extraído.

Tamanho desencontro talvez fosse compreensível, se europeus e americanos ignorassem o que ocorre no Congo, e vice-versa. Mas não só isto é impossível no mundo globalizado de hoje, como provavelmente empresas europeias e americanas estarão entre as participantes da licitação.

A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de São Paulo no dia 21 de agosto de 2022, mostra uma pessoa com roupa de astronauta que tenta fazer fogo a partir da fricção de um graveto contra um pequeno tronco de madeira. A roupa de astronauta é da cor cinza com detalhes rosa. Ele está agachado, olhando fixamente para o atrito de faz com as madeiras. No ponto de contato da fricção, uma fumaça surge antecipando a fagulha que dará origem ao fogo
Ilustração de Luciano Salles

Questionados sobre a licitação, que alcançará até o Parque Nacional Virunga, o mais importante santuário de gorilas do mundo, autoridades do Congo afirmam que seu único objetivo é o de levantar recursos para apoiar projetos de redução de pobreza e ativar a economia. "Esta é a nossa prioridade. Salvar o planeta não é a nossa prioridade".

Ante tal evidência da virtual inexistência de liderança e coordenação global para combater a crise climática, busquei orientação em um livro com o convidativo título "How the world really works" (ed. Viking, 336 págs, a partir de R$ 62,89 ebook), escrito por Vaclav Smil, um reconhecido autor de livros científicos, que Bill Gates diz estar entre seus autores favoritos.

Como diria meu pai, "fui buscar lã e voltei tosquiado".

Smil diz no início do livro e repete ao final que não é otimista nem pessimista; é um cientista. Afirma em seguida que não é possível compreender o funcionamento do mundo sem entender a importância fundamental da energia na atividade humana. Traz então uma profusão de dados numéricos, informações e comparações que demonstram de forma cabal nossa profunda dependência de energia.

Não apenas aquela necessária para as funções evidentes como a iluminação de nossas casas, aquecimento e refrigeração, transporte diário e viagens intercontinentais, mas principalmente a que está contida em virtualmente tudo que consumimos. Com fascinante precisão, aprendemos a quantidade de energia necessária para que cheguem à nossa mesa diversos alimentos, como por exemplo o tomate, que consome até 650 ml de diesel por kg.

O autor demonstra a importância dos "quatro pilares materiais da civilização moderna" –plástico, cimento, aço e amônia (para fertilizantes)– e explica como sua produção em larga escala é inviável sem a utilização de energia fóssil. Chama também a atenção para o fato de que fontes de energia renováveis, como eólica e solar, são intermitentes por natureza, requerendo grande capacidade de estocagem. É também o espaço necessário para seu armazenamento que torna inviável o uso de energias alternativas para a aviação e o transporte marítimo.

Todos esses elementos o levam a concluir que seremos dependentes de combustíveis fósseis por algumas décadas ainda: "Mesmo que multipliquemos por três ou quatro o ritmo atual de descarbonização, combustíveis fósseis ainda serão dominantes em 2050". A essa conclusão, adiciona dois elementos agravantes: a dificuldade de fazer previsões de longo prazo e a inexistência de exemplos passados de coordenação global para assumir custos e sacrifícios presentes em troca de benefícios no futuro distante.

O autor ironiza os otimistas que creem em sucedâneos tecnológicos milagrosos para a energia fóssil, como Chomski, bem como os que acreditam na nossa crescente capacidade de controlar o mundo, com Yuval Harari. Ridiculariza também os participantes das conferências climáticas, que já há 30 anos reúnem-se regularmente em localidades turísticas, despreocupados com a pegada de carbono de suas viagens e sem ter produzido um único acordo de redução de emissões efetivamente vinculativo.

Com todos esses elementos, o livro poderia ser lido como um importante alerta quanto à dificuldade do desafio à nossa frente e uma conclamação à ação; um encorajamento a exigir dos líderes globais maior coordenação e a aceitar custos e restrições, para evitar o aquecimento excessivo e suas graves consequências, que já se fazem sentir.

Mas não é essa a sensação que temos ao fim da leitura. Ao contrário, apesar de algumas frases de estímulo, o tom geral é de descrença em relação à possibilidade de reação coordenada e de conformismo com a incapacidade de planejar; "o futuro é uma repetição do passado – uma combinação de avanços admiráveis com (in)evitáveis reveses".

Surpreende ainda que não haja no livro recomendações de políticas ou diretrizes para acelerar a redução de emissões. Ao mesmo tempo em que afirma não haver progresso possível na ausência de um acordo claro e irreversível entre as principais nações emissoras, coloca sérias dúvidas quanto à disposição dessas nações de imporem ônus a seus cidadãos (e eleitores) em troca de benefícios que, segundo ele, estão duas gerações à frente.

Será muito triste se vier a ser aplicável à questão ambiental o princípio que Max Planck, um dos pais da física quântica, cunhou para a ciência: "Uma nova verdade científica triunfa não por persuadir os que se opõem, fazendo-os ver a luz. Mas, antes, porque seus opositores acabam morrendo, e uma nova geração, já familiarizada com essa verdade, toma seu lugar".

Apesar da enorme imprevisibilidade do futuro enfatizada por Smil, não há nenhuma dúvida de que protelar a ação, delegando-a às próximas gerações, causaria grande sofrimento. Em que pese toda a precisão de números contida no livro, continua válido o aforismo que diz ser melhor estar aproximadamente certo do que precisamente errado.

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