Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Entre Portugal e Espanha, a pandemia mudou minha vida amorosa

Abri a porta da minha casa, nos abraçamos forte, adiando um beijo que mostraria o que estávamos tentando descobrir há meses

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Julia Santalucia

É escritora e redatora, mora em Lisboa, em Portugal

Uma boa história de amor tem sempre uma dose de acaso. Ou é o acaso que faz a gente enxergar o amor?

Ignacio Aparicio (sempre achei que ele tinha nome de personagem), 25 anos, espanhol, tradutor, cachos despenteados, morador da freguesia de Arroios. Apesar de vivermos no mesmo bairro em uma cidade pequena como Lisboa, nunca nos encontramos - pelo menos não que tenhamos visto. Descobri que frequentávamos o mesmo supermercado na Avenida Almirante Reis, mas não nos notamos dentre as prateleiras de verduras.

Foi no Cais do Sodré, no samba da banda dos meus amigos, que acabamos nos esbarrando. Eu estava com cólica e preguiça, era inverno, dia de tempestade. Mas dei um jeito de me animar - recorri a algumas doses de cachaça que eu tinha em casa - e peguei o metrô. Chegando lá encontrei o meu amigo, que estava com outro amigo. Ignacio Aparicio.

Confesso que mal olhei para o garoto devido a sua altura. Ele era bem baixinho, e eu tenho 1,76 metro. Mas o menino insistiu, pediu dose de caipirinha comigo, perguntou o que eu fazia, arriscou até um samba desajeitado. Foi embora mais cedo, mas pediu o meu telefone.

Ele foi passar um tempo em Madri e eu recebi a minha família em Lisboa. Aquela distância fazia a gente imaginar um beijo, um toque, um carinho que ainda não tinha existido. Era fim de ano, o que deixa naturalmente tudo mais mágico. Fui me envolvendo por aquele espanhol bom de palavras. Trocamos mensagens durante dois meses sem parar.

Para acolher o nosso reencontro escolhi um lugar novo de cerveja artesanal, meio místico, bem em frente à minha casa. O fato de ser perto de casa facilitava que o date se estendesse. Já tinha até treinado dizer "você não quer subir para tomar uma saideira?". Ele não entenderia o conceito de saideira, eu explicaria subindo as escadas. Abriríamos a porta e começaríamos uma pegada quente ali no corredor mesmo.

- Ignacio?

Que gatinho. Não lembrava desse óculos, caramba. Mas onde ele pensa que vai tocar um violão agora? Bom, faz parte do estilo. Que gatinho. Cortinas vermelhas, velas acesas, música de bruxaria. Amei a vibe deste bar. Sentamos um em frente ao outro, numa mesa bem pequena. Pé com pé. Pedimos uma cerveja, duas, três. Pernas entrelaçadas. A frase que mais falávamos e ouvíamos era o "eu também". Mãos se acariciando.

Gostávamos de publicidade - de criticar a publicidade, de observar os significados das palavras, de tirar um sarro dos portugueses. Ele se aproximou e finalmente nos beijamos. A música parecia mais alta, a vela mais quente. Abri os olhos como quem diz: cadê o beijo caliente que imaginei? Que imaginamos?

Não deu tempo nem de insistirmos mais no beijo que a pandemia chegou. Ele correu para Madri, parecia o fim do mundo (o que torna, naturalmente, tudo mais mágico) e o papo continuou. A gente conversava sobre tudo, escrevia contos juntos, imaginava futuros, partilhava teorias da conspiração, via séries pelo zoom, ouvia Jorge Drexler. Fomos parceiros de quarentena em cantos diferentes da península ibérica.

Em maio o Ignacio atravessou a fronteira de volta e apareceu na minha varanda de surpresa. Eu estava sentada, tomando um vinho e pensando nele, confesso. Fiquei feliz com aquela cena, parecia um filme. Abri a porta da minha casa, nos abraçamos forte, adiando um beijo que mostraria o que estávamos tentando descobrir há meses.

Eu não sentia nada... Por que eu não sentia nada? Ele também não sentia, a não-química era recíproca. O encontro acabou esquisito, com uma desculpa qualquer. Ficamos tão envergonhados com aquele desencaixe que não conseguimos nem conversar. Silenciamos o WhatsApp, seguimos nossa vida, dessa vez em bairros diferentes de Lisboa.

- Ignacio!

Dias depois eu estava caminhando pelo Cais, com o nosso não-encontro gritando na minha cabeça, quando vejo aquele menino dos cachinhos desordenados andando por ali. Estava nervosa, mas não hesitei.

- Já que nos encontramos aqui, vamos conversar?

Ele fez que sim com a cabeça, ainda em silêncio. Nos sentamos em frente ao Tejo, na mesma rua em que nos conhecemos. Era fim de tarde, o rio estava agitado, fingindo ser mar. Nos olhamos com um sorriso amarelo e o que veio a partir daí foi uma conversa honesta e bonita sobre inventar paixões. Éramos muito parecidos, tínhamos muito em comum, mas era só isso. Entendemos, juntos, naquele encontro ao acaso, que o acaso sozinho não sustenta o amor.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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