Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Pensei ter encontrado um Hannibal Lecter em um casebre no meio do sertão

Depois ficou claro que seu comportamento não tinha traços de psicopatia, mas era reflexo da sua solidão

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Renan Rodrigues dos Santos

Roteirista, mora em Sorocaba

Por quase uma década, meu pai foi vendedor autônomo de cosméticos, e um dos poucos momentos em que eu me sentia realmente conectado a ele era quando o acompanhava no trabalho, percorrendo pequenas cidades e povoados esquecidos do Nordeste.

Meu pai tinha gosto pelo que fazia e, ao visitar especialmente os sítios daquela região, ele se sentia sempre em casa, mas com as vendas abaixo da meta, nem todos os dias eram satisfatórios.

Certa vez, estávamos em uma região remota do sertão do Araripe, a poucos minutos do anoitecer. Com a seca castigando a região, os pobres agricultores precisavam poupar dinheiro para comprar água, dificultando as nossas vendas que, naquele dia, haviam sido desastrosas. Meu pai insistia em explorar estradas no meio daquele deserto, na esperança de garantir ao menos o dinheiro do nosso jantar.

A frustração e a exaustão eram visíveis no rosto dele, e quando a desistência já parecia iminente, da garupa da moto percebi um simples casebre, parcialmente encoberto por algumas árvores, fora da estrada principal. Com o anoitecer, o local era sombrio, dava medo. Torci para que meu pai não o tivesse enxergado, mas não teve jeito. Ele manobrou a moto por uma trilha estreita e seguimos em direção aquele ambiente amedrontador.

A distância, fiquei observando meu pai se aproximar do casebre e bater à porta. Do interior da casa, ouvi a voz de um velho, desconfiado, questionando quem estava ali. Quando meu pai se apresentou como vendedor, de forma simpática, o velho decidiu abrir a porta, bem devagar, olhando para nós.

Fiquei intimidado com o comportamento cabreiro do velho, mas, logo após nos encarar, ele abriu um pequeno sorriso e nos convidou para entrar. Não senti que aquilo seria uma boa ideia, mas tive que segui-lo.

A casa era simples, mas muito bem-organizada, embora o ambiente fosse quase claustrofóbico. Sentei ao lado do meu pai na mesa, bem diante do velho, que inicialmente demonstrou interesse pela explicação sobre os produtos que lhe eram oferecidos, mas não demorou muito para que ele revelasse um comportamento estranho, com seu interesse se voltando para a minha vida e a do meu pai, com uma série de perguntas particulares e aleatórias, quase compulsivamente, como um interrogatório.

Durante a conversa, lembro de ter associado o sorriso do velho ao daqueles psicopatas clássicos do cinema, como o Hannibal Lecter de Anthony Hopkins.

Mais bizarro ainda era o fato de o velho aceitar quase de imediato praticamente todos os cosméticos que meu pai lhe oferecia. Afinal, foi difícil acreditar que ele iria precisar de um creme esfoliante para as mãos ou de dois condicionadores de cabelo para seus poucos fios brancos.

Percebia uma expressão de empolgação e estranheza do meu pai a cada produto que o velho aceitava comprar, mas ele tentou logo confirmar se ele realmente tinha dinheiro para aquilo.

E quando o velho finalmente se retirou em direção a um dos quartos, em busca do dinheiro, meu pai sorriu para mim, deixando a sua empolgação ainda mais evidente —tínhamos cumprido a meta de vendas daquele dia? A confirmação veio depressa: o velho retornou trazendo um pequeno maço de dinheiro, enquanto forçava a vista para identificar as notas. Decidido, ele entregou para o meu pai mais que o dobro do valor devido.

Refletindo agora sobre a situação e sobre a percepção inicial que tive, chegou a passar pela minha cabeça se aquilo não teria sido uma espécie de teste de honestidade que o velho fizera. O valor não só supriria a meta de vendas daquele dia como também do próximo.

Estávamos, de fato, necessitados daquele dinheiro, e muitos veriam ali uma grande oportunidade de levar vantagem e sair impune, afinal, estávamos sozinhos no meio do nada. Meu pai, no entanto, tomou a maior das atitudes possíveis naquele momento: pegou apenas o dinheiro devido e devolveu as notas que excediam. O velho recebeu o dinheiro de volta com um sorriso tímido —guardo essa expressão dele até hoje.

O negócio parecia finalmente finalizado, e eu já rezava para ir logo embora dali, mas o velho ainda insistia em puxar assunto, de forma cada vez mais invasiva. Incômodo, meu pai encontrou uma brecha para pedir um copo com água. Animado, o velho foi em direção à cozinha, e assim, meu pai me puxou rapidamente, fazendo com que saíssemos apressados e em silêncio —estávamos longe de casa e, de qualquer forma, precisávamos mesmo ir embora.

Lembro, ainda, de já na garupa da moto, enquanto se afastava pela trilha, olhar para trás e perceber a expressão desolada do velho nos observando da porta do casebre, enquanto segurava o copo com água. Depois, ficou claro para nós que o comportamento dele, pela insistência em nos “prender” ali, não escondia nenhum traço estranho de psicopatia: foi apenas um triste reflexo da sua solidão naquele lugar.

Mas, se não tivéssemos passado por acaso por aquela estrada perdida no sertão do Araripe, eu não teria presenciado algo tão grandioso e exemplar sobre a vida.​

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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