Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Trabalhei seis meses em um barco de pesca no Alasca até ser presa pela imigração

Passei uma noite na prisão, e lá o carcereiro se espantou: 'Uma brasileira? Nunca vi uma brasileira!'

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Silvia Fantinatti

Jornalista, possui um ateliê de cerâmica artesanal na praia do Campeche, em Florianópolis

Além do frio cortante, o que mais incomodava no deck do navio era a camada de gelo escorregadio sobre o metal, mas forcei a caminhada até a proa para ver aquela paisagem inédita na minha vida. Neve e gelo à beira-mar sempre me pareceram idílicos, e isso à volta do barco era sujo e lamacento. Mas era neve! Minha primeira neve! Dutch Harbor foi um divisor de águas. Eu tinha conseguido, estava no Alasca!

Um mês antes, minha jornada diária era de no mínimo 14 horas de edição. Eram horas de uma vida que escoava à revelia, e eu estava infeliz. Daí a arranjar uma discussão na TV foi um passo. Meu chefe imediato, que tinha nome de anjo, até tentou me segurar, mas, orgulhosa, impus condições não disponíveis e dancei. No outro trabalho que fazia para o governo, o secretário da hora foi demitido e o rapaz que o assessorava resolveu ir para o lado escuro da força.

Assim, depois de escolher entre quatro trabalhos diferentes em outubro, cheguei a março desempregada. Mas uma carta de muito longe mudou tudo: “Você quer vir trabalhar no Alasca? Se chegar em 15 dias, eu coloco você no Bering Trader”. Rosita, amiga de décadas, me oferecia um emprego ilegal no maior barco processador do então rico comércio de salmão e caviar que os Estados Unidos mantinham com o Japão no mar de Bering. Em dez dias eu estava lá!

O Bering contava com sete pesqueiros à sua disposição e tinha tanques de armazenamento do peixe in natura com capacidade superior a quatro toneladas. Por isso, ao contrário dos barcos menores, nunca conseguíamos uma folga quando a pesca era interrompida pelas normas de preservação. Chegamos a 23 dias seguidos sem parar.

Eram diversos postos de trabalho diante da maquinaria que ficava no porão do barco e apenas uma posição no deck superior, para a pesagem das ovas. A cabeça cortada do peixe era dejeto. Um equipamento abria a barriga e levada as vísceras ao deck superior por uma esteira rolante. Com uma colher que jorrava água, equipes raspavam o interior do peixe que seguia limpo para a pesagem, um dos meus trabalhos, durante oito horas por dia.

Já completamente limpo, o salmão era acondicionado em grandes bandejas sobre balanças até completar 50 libras. Estas eram então encaixadas em uma estrutura de racks rotativos que passavam pelo interior do freezer.

Ao sair, já como um bloco de gelo, o peixe era embalado em caixas, por sua vez empilhadas em um grande estrado de madeira na proa do barco. Quando a pilha chegava a um metro e meio de altura, era içada para o navio japonês ancorado ao lado.

Meu outro posto de trabalho era na limpeza e separação das ovas, no deck superior ao ar livre. Eram oito horas em contato apenas com os japoneses. Tinha que separar as ovas sem romper a película que as envolve. Eu me sentava diante do final da esteira que vinha do deck inferior com uma cesta plástica entre os joelhos, que era substituída sempre que completava 30 libras de ovas limpas.

Trabalhávamos com três luvas: uma de algodão bem justa, uma de poliéster como as que se usa para afazeres domésticos e uma luva de borracha grossa e áspera que efetivamente protegia do frio e evitava que o peixe escorregasse.

Nos primeiros tempos, ao final do dia eu mal conseguia mexer as mãos. No dia seguinte, também levava umas horas até movimentá-las direito. Banho, só a cada dois dias, pois apesar do salmão cheirar a sangue podre, era necessário economizar água doce, a coisa mais preciosa em um navio.

O vazamento do petroleiro Exxon Valdez em 1989 interrompeu anos de negócios lucrativos no setor e extinguiu a indústria pesqueira da região, mas em 1985 o salmão era abundante e, além dos cardumes, havia leões marinhos, "king crabs" e muitas baleias. Seguimos até a altura de Nome e já estávamos embarcados havia quatro meses e meio quando começamos a voltar.

Em um lindo dia de sol, o barco fez uma parada para abastecer em Ketchikan, o lugar mais bonito que vi no Alasca. Já não havia neve, e a cidade se derramava em flores e plantas em toda parte: nos postes, nas fachadas, nas esquinas. Nos divertimos por horas em terra firme e, à noite, voltamos ao barco. Foi quando meu drama pessoal começou.

Um americano e um israelense que estavam a bordo se desentenderam, e o primeiro denunciou o segundo ao fiscal de imigração do porto. Resultou que éramos seis ilegais e, apesar de muito eficiente, a imigração americana não foi rápida a tempo de nos retirar do barco ali.

O Bering partiu levando nossas almas desoladas por mais cinco dias, até nos buscarem em alto-mar. Fiquei uma noite na prisão de Ketchikan e, em um momento, o carcereiro, que me tratou muito bem, se espantou: “Uma brasileira? Nunca vi uma brasileira!”.

Concordei em voltar ao Brasil por conta própria, mas em função das escalas passei a noite em uma prisão de Los Angeles. Ali tive a exata noção do que é ser ilegal na "América". Meus documentos iam dos policiais à equipe de bordo e só foram devolvidos em Cumbica, São Paulo. Foram seis meses de aventuras e, apesar do desfecho malogrado, eu faria tudo de novo!

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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