Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Me apaixonei pelo menino que me irritava na infância durante a aula de piano

Na adolescência, acompanhava de longe o loiro endemoniado e, anos depois, o reencontrei numa festa

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Clarisse Escorel

Essa história começa quando o piano chega lá em casa. O piano que minha mãe tocava na juventude e voltava para a nossa casa, mais especificamente para o quarto que eu dividia com minha irmã. Um quarto relativamente espaçoso, mas ainda assim não achamos muita graça em receber aquele novo habitante.

O fato é que minha mãe decidiu e quando isso acontecia não havia nada a fazer. O piano ficaria no nosso quarto e teríamos aulas semanais perto de casa. Algo que também, é preciso dizer, não me animou muito. O máximo que consegui foi que minha amiga Lena fizesse a aula comigo.

O que não estava previsto, nos meus planos, era que fôssemos dividir a aula com dois meninos. Eu e Lena em um piano, João Lucas e Antônio ao lado, no outro. Tínhamos 9 anos.

Chegávamos sempre um pouco antes da aula começar. Aguardávamos numa sala que dava para um jardim que, por sua vez, dava para o Parque Lage. Eu sempre sentava ao lado da Lena ou, caso ela não tivesse chegado, ficava guardando o lugar para ela ao meu lado, em pânico com a possibilidade de que um daqueles meninos chatérrimos pudesse ousar se colocar nessa posição e sentar perto de mim. Com isso, João Lucas acabava na minha frente, me olhando do outro lado da mesa de centro. O que me irritava bastante.

Em uma sala vazia, a imagem mostra um piano preto com um banquinho à sua frente. O piso é de madeira. No fundo, é possível ver as cortinas escuras e as janelas abertas, deixando entrar a luz do sol.
Detalhe do piano de cauda Steinway Sons na sala do coro da Osesp (Orquestra Sinfônica de São Paulo) - Eduardo Knapp/Folhapress

Durante três anos, ainda que João Lucas e Antônio aprontassem todas, as aulas foram divertidas. Não aprendi a tocar piano, mas isso não teria a menor importância diante do que o futuro me reservava.

Um dia, nos despedimos da professora e nunca mais voltamos. Decisão que minha mãe lamenta até hoje. O piano rodou pela casa de amigos, até que foi dado de presente. Eu e Lena seguimos amigas vida afora. O tal Antônio, nunca mais vi.

João Lucas, porém, surgia volta e meia pelas esquinas do Jardim Botânico, bairro onde nós dois nascemos e moramos a vida toda. Na adolescência, notava ele de longe. Reconhecia o menino loiro e endemoniado que fazia aula de piano comigo. Achava ele interessante.

Eis que um dia toca o telefone. Minha amiga Lena reencontrara o menino da nossa aula de piano, não sabia se eu lembrava, o João Lucas. Eu lembrava.

Não muito tempo depois, chegando à uma festa, dou de cara com “alguém” que preferiria não ter encontrado. Tinha sido avisada antes: o fulano está acompanhado. Escolada em decepções amorosas, segui para a festa assim mesmo.

A festa estava animada. Pista cheia e gente querida por perto. E então João Lucas, lindo de camisa branca e calça jeans, atravessa a pista distraído. Num impulso, suada e sem fôlego, encosto meu dedo indicador nele e pergunto: “você não é o João Lucas?”. Diante da afirmativa emendo: “a gente fez piano junto quando era criança”. E, em seguida, morro de vergonha. Que tipo de abordagem é essa? Ele fez que sim – mas claro que não lembrava.

É uma imagem aberta. Há um casarão antigo ao fundo, na cor branca. É possível ver algumas árvores na frente dele e uma grama baixa até a escada que dá acesso ao casarão. Ao fundo, também é possível ver algumas montanhas
Vista do Parque Lage, no Rio de Janeiro - Alexandre Macieira / Riotur

O que importa é que naquela noite de outubro, a música sumiu, tudo em volta parou, e ficamos os dois no meio da pista, trocando algumas palavras. Ele conta que até saiu faísca. Eu tenho certeza que sim.

Brinco que ele me conquistou quando revelou ter lido “As Brasas”, do Sándor Márai. Na verdade, acho que me conquistou antes, aos nove anos, naquelas manhãs no Jardim Botânico.

Hoje levantamos cedo para acordar as crianças. Aulas iniciadas, João Lucas lia o jornal. Olhei para ele de longe: de óculos, grisalho, tão lindo. Meu companheiro de vida, tão amado, tão divertido. Me aninhei no seu colo por alguns minutos. Bendito piano.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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