Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu África

Mia Couto fez a minha mãe reencontrar ex-namorado de 26 anos antes

Fomos a Moçambique para uma entrevista com o escritor e descobrimos que o ex tinha virado ministro do país

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Beatriz Brandão

Antropóloga, jornalista e roteirista, mora no Rio de Janeiro

Estava de férias em Estocolmo, espremendo os ouvidos para entender a explicação sobre o Museu do Vasa (Vasamuseet) no português de Portugal. Quando o wifi do ônibus de turismo voltou a funcionar, vi que havia um email novo em minha caixa de entrada.

Ao ler o nome do remetente, não consegui segurar o grito, que fez os passageiros se deslocarem de suas cadeiras pensando que algo grave havia acontecido. Era um email do meu escritor preferido.

Voltando algumas casas da história: no primeiro livro que li de Mia Couto, já soube que queria conhecê-lo. Foi amor à primeira lida, igual àquelas paixões que temos quando pensamos ter encontrado o amor de nossas vidas. Eu sabia ter encontrado meu autor predileto e mais: ele estava vivo. Não podia perder a chance de conhecê-lo, como já tinha perdido de vista Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Jorge Amado.

Ainda que pensasse que seria para sempre um spam na caixa de email desse homem, decidi me endereçar à Moçambique. Me apresentei, disse de minha admiração e perguntei se ele toparia uma entrevista. A resposta me chegou em um sol de rachar de julho em meio ao "hop on hop off" sueco.

A imagem mostra Mia Couto, com uma barba por fazer e os cabelos parcialmente grisalhos, com a mão direita tocando o óculos, diante de um fundo com as cores roxo, preto e branco
O escritor moçambicano Mia Couto durante o encerramento da Festa Literária da Zona Sul, em São Paulo - Eduardo Knapp - 21.set.19/Folhapress

Acontece que, na minha família, a história com Moçambique é mais antiga que a caixa de entrada do meu email, mais antiga ainda que a minha primeira leitura do Mia Couto. Ela começou no doutorado da minha mãe.

Lembra que comparei a sensação de ler a prosa poética de Mia com amor à primeira vista? Pois bem, em uma sala de aula na década de 1990, minha mãe viveu as borboletas no estômago sem abrir um livro, apenas ao trocar olhares com um aluno estrangeiro. Adivinhem de qual país?

Acho que a paixão por pessoas nascidas nesse território africano pode ser genética (alguém explica isso?). Eles namoraram por oito meses, e ele voltou para sua cidade. Em uma época sem redes sociais e smartphones, perderam o contato e moraram apenas na lembrança um do outro por exatos 26 anos. Mas o mundo gira...

Em dezembro de 2019, eu e minha mãe fomos passar o Réveillon na África do Sul e depois iríamos à Maputo para conhecer Mia Couto. Até que minha mãe fala: “Sempre tive vontade de conhecer Moçambique, meu ex falava tanto de lá”. Prontamente respondi: “Vamos procurá-lo, faremos esse reencontro”.

Ela ruminou um pouco com receio de como aquela procura, tantos anos depois, poderia soar. Assunto parcialmente encerrado.

Corta para 31 de dezembro na África do Sul. Estávamos na fila do passeio para o Cabo da Boa Esperança quando escutei, à minha frente, um casal moçambicano. Seguimos junto àquele simpático casal durante todo o passeio quando, em determinado momento, contei que iríamos à Maputo dentro de poucos dias para a entrevista.

Não perdi a oportunidade de falar do ex-namorado da minha mãe, porque eu acredito nas coincidências. Vai que havíamos encontrado alguém da família dele, em outro país, em uma fila para um lugar de nome que carrega um bom presságio, Boa Esperança?

Disse nome e sobrenome do cidadão, e a pronta resposta deles foi: “Conhecemos esse nome sim, mas não deve ser o mesmo, porque o que conhecemos é muito importante em nosso país”. “Importante como?”, logo perguntei. Passei a saber, segundos depois, que se tratava de um ministro de Estado.

Era possível que o ex da minha mãe era a mesma pessoa que falavam nossos amigos recém-conhecidos em uma fila de passeio no último dia do ano? Sim, era ele.

Eu lembrava dele, em detalhes. Minha mãe teve alguns namorados, mas não à toa era o único namorado dela que me recordava —mesmo que eu tivesse 5 anos quando eles namoraram e tenha ido à casa dele apenas uma vez (que, coincidentemente, era na rua em que moro hoje).

Chegando ao hotel, consegui o telefone dele e convenci minha mãe a escrever. Em poucos minutos, uma mensagem emocionada na tela do celular apitava, daquelas que mostram que um carinho, quando existe, não é suplantado por 26 anos de total ausência.

Essa não é uma história de reencontro amoroso porque, como esperávamos, ele estava casado, com filhos e netos, mas o reencontro dos corações não precisa recomeçar a história do ponto que finalizou.

E os acasos acabam? Quando minha mãe disse ao casal que iria à Maputo para que a sua filha entrevistasse Mia Couto, a resposta foi: “Que maravilha, meu amigo Mia, almoçamos juntos. Se precisarem que fale algo com ele, é só avisar”. Olhei a tela ainda incrédula com aquela geometria dos encontros que unia gerações, literaturas, continentes e paixões.

Conclusão: fomos para Moçambique e teve Mia Couto, reencontro com antigo namorado e saída com os novos amigos moçambicanos feitos na fila, quase uma grande família. Contando essa história ainda me pergunto: qual a probabilidade de um encontro entre você, sua mãe, um ex-namorado dela —de 26 anos antes— e o seu escritor preferido em outro continente?

Acredito na força da paixão na leitura à primeira vista, na força de um email que pode não virar spam e nos reencontros depois de ausências distribuídas em silêncios. Os acasos também moram nas memórias despertas, aquelas que não se constrangem diante do adormecimento. O acaso une tempos díspares, pessoas desconhecidas e continentes distantes. Uma mensagem que você envia do Brasil pode ser lida na Suécia, continuada na África do Sul e acontecida em Moçambique.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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