Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

De Ilhéus à Amazônia, rodei o país atrás do amor de uma cigana

Na Chapada Diamantina, ela foi embora, prometendo um reencontro

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Rodrigo Moreno

Fotógrafo, mora em Londrina (PR)

Foi numa viagem de carona pelo Brasil, durante sete meses. Junto, um projeto: fotografar a juventude brasileira. Porém, o amor entrou por acaso, como aqueles pássaros que invadem o enquadramento da foto e são capturados em pleno voo.

Caminhava por uma das praias de Ilhéus, na Bahia, numa tarde bonita, ensolarada e de céu azul. Como nos romances de Jorge, me sentia um capitão de areia, só faltava ser amado. E foi o que aconteceu! Avistei-a de longe, acompanhada de uma amiga. Ajeitei a cabeleira comprida e desgrenhada: uma selva ressequida de sal e areia. Estufei o peito peludo, estilizei o andar; entre Meursault e Moreno, um pé pisava macio, fingindo indiferença, o outro, se enterrava na ansiedade. Escolhi uma música clímax no discman — em 2006 quase ninguém mais usava esse troço, mas eu sim —, e parti para o abraço; só não imaginava que seria mais que isso.

Passei reto, olhando de viés, só pra dar tempo de escolher: ela ou a amiga? A amiga! Mas foi ela quem invadiu meu coração. Primeiro, mandou um tchau, me deixando sem chão logo de cara. E o meu niilismo Meursaultiano, após anos de treino, onde fica? Lerdo, mandei outro e sem muita convicção. Desesperado, parei. E agora, o que faço? Xaveco na volta? Mas o final da praia ainda tá longe... Ela, percebendo e pra ajudar, fez o gesto de “depois” com os dedinhos.

Sempre que um libriano está na dúvida e alguém dá uma mão, ele aproveita e pede abraço; num impulso, fiz o gesto do relógio: depois que horas? Foi quando ela se levantou e esculhambou a minha viagem! Correu na minha direção e pulou em cima de mim, adivinhando o meu pedido. Assustei, feliz.

Ela estava de Ray-Ban; sempre achei feio mulher de Ray-Ban. Mas, antes mesmo de processar a imagem na mente, senti de repente a textura da sua boca na minha... o bafo cálido de maconha... o beijo desesperado, guloso... minhas mãos entrelaçando o seu pescoço e seus cabelos espessos de rastafári engolindo-as pra sempre... ela roçava a sola dos pés na minha perna... eu, que sou podólatra apaixonado, nunca tinha visto tamanha ousadia.

“Os óculos... tira; quero ver teus olhos”, falei.

“Tiro, mas fumei um”, ela disse, e sorriu.

Vi que vendia pulseiras. “Você é hippie?”, perguntei.

“Artesã! ”, corrigiu.

Marcamos um encontro à noite, ali na praia mesmo. “Vou fazer fogueira; você se guia pela fumaça”, ela indicou.

Mas o que me guiou foi a paixão. Após nossa primeira noite, zarpei do camping e armei minha barraca na praia. Foram semanas de amor sem parar! Fiquei vagabundo, abri mão do projeto, passei a sorrir à toa, etc.

Todavia, como escreveu Paulo M. Campos, o amor acaba “na acidez da aurora tropical”. Não teve jeito, paixão de estrada quase sempre vira poeira. A única coisa que eu acrescentaria na belíssima crônica do Mendes, é que o amor acaba quando não há mais cliques.

Numa das nossas andanças, isso já na Chapada Diamantina, furtaram o camping onde estávamos. E como a paixão deixa a gente vagabundo, não estava mais descarregando as imagens do cartão. O que realmente dói pra um fotógrafo não é tanto a perda da máquina... Pois é, perdi uma parte considerável do projeto.

A amada acabou indo embora, prometendo um reencontro e deixando o número de telefone da irmã. “Mas por que da irmã?”, reprimi. “Porque sou cigana, meu bem! Cigana não tem telefone”, ela respondeu.

Fiquei desesperado. Além da solidão, um sentimento horrível de desânimo e cegueira. Não contemplava mais nada, só os orelhões de telefonia pública. Falei com a irmã, a mãe, até com o cachorro dela, acho que falei, se não me falha a memória.

A irmã foi me enrolando. Uma hora dizia que a foragida estava no estado do Pará. “Mas Pará é grande! Onde ela exatamente parou no Pará?”, eu questionava. Outra que estava indo pra Manaus. Quer dizer, o amor perdido era o mapa pelo qual eu me guiava.

Em Belém, foi no Mercado Ver-o-Peso que vi todo o peso da paixão. Qualquer saia colorida ou essas tornozeleirazinhas de conchinhas que deixam os pés convidativos, faziam das minhas tripas coração. Qualquer cheiro de maconha trazia o efeito nostálgico da madeleine proustiana. Anos depois, a minha nem tão hipotética figura perdida na selva amazônica e gritando o nome da amada, virou piada de bar entre os amigos.

Mas eu também tinha que fechar essa história com lirismo. Após voltar de Manaus com febre tifóide e ficar doze dias internado na minha cidade, em Londrina, no Paraná, fui para o estado do Rio de Janeiro atrás dela. Sua família morava em Petrópolis, no alto do morro, bem no alto mesmo, praticamente na última casa.

Fui mais que bem recebido! Não por ela, ausente. Fiquei lá dois dias, à sua espera. A irmã e a mãe se condoeram com a minha dor. O irmão mais velho, cria do morro, se abismou com a minha ingenuidade: “Ela é casada, meu irrrmão! E o marido tá preso, cumpade! Sai dessa!”, me alertou.

Saí rapidinho! Mas antes, contemplei a paisagem serrana da soleira da porta. Aliviado, descobri que insistir num amor que acabou, é como prender um pássaro pra sempre no enquadramento da foto.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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