Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Minha irmã não acreditou quando viu sua casa em foto de casal alemão

Sylvia chorou ao reconhecer a varanda de São Carlos em retrato do filho dos Ascherfeld, morto na guerra

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Paulo Reali Nunes

Promotor de Justiça, mora em São Paulo

Sylvia foi morar na Alemanha no final dos anos 1960. Foi para uma temporada de dois anos, acompanhando o marido em uma pós-graduação, levando o filho de um ano e meio.

O marido só falava português. Sua primeira tarefa seria aprender a língua alemã, de modo que permitisse acompanhar as atividades do curso. Isso lhe custou alguns meses de imersão em alemão, de manhã à noite.

Sylvia era a retaguarda, cuidando do filho e do pequeno apartamento que lhes foi destinado.

Ela falava bem inglês, chegara a dar aulas na escola normal, mas de alemão não sabia patavina.

Lembremos, estou falando de 1968. O homem só iria à Lua no ano seguinte, e os alemães ainda curavam as feridas da guerra, terminada havia pouco mais de duas décadas. Na Alemanha, dividida pela Guerra Fria, só se falava alemão. Nem mesmo em inglês eles se comunicavam, ou porque não soubessem ou talvez porque não quisessem fazê-lo.

Com o filho de um ano e meio para cuidar, Sylvia não tinha como estudar alemão. Haveria de se virar como pudesse.

Ainda nos primeiros dias, ela lutava para se fazer entender com a atendente de uma loja usando meia dúzia de palavras alemãs que já tinha aprendido, misturando inglês e, claro, deixando escapar diversas palavras em português. Sem sucesso, a balconista não entendia.

Atenta ao palavrório e à dificuldade, aproximou-se uma mulher bem mais velha. Em um português perfeito, apesar do sotaque carregadíssimo, perguntou se queria ajuda. Dá para imaginar o alívio com que o auxílio foi aceito.

Feita a intermediação, realizada a compra, puseram-se a conversar. A mulher —que vou chamar de Bertha porque não me acorre o nome verdadeiro— explicou que falava português porque havia morado no Brasil muito tempo antes. O marido era gerente de uma fábrica, e eles estavam na Alemanha para férias quando estourou a guerra de 1939. Ficaram retidos e nunca mais puderam voltar.

De São Paulo, disse Sylvia quando perguntada de onde era. Pois foi em São Paulo em que eles haviam morado, informou a outra, complementando que não na capital, mas em uma cidade pequena do interior chamada São Carlos.

Era demasiada coincidência: encontrar uma alemã que falava português, tinha morado no Brasil, na mesma cidade onde nasceu e viveu até o casamento, dois anos antes. Claro, a conversa se estendeu e, para abreviar, digo que ficou esclarecido que o marido tinha sido gerente da Lápis Johann Faber (hoje Faber-Castell), filial de empresa alemã, então a maior fábrica de lápis da América Latina —e orgulho de todos nós, são-carlenses.

A foto mostra uma máquina gigante com três esteiras de onde saem lápis de cor amarela para serem colocados em caixa. Há uma janela do lado esquerdo, por onde entra a luz do sol. Um funcionário está sentado junto à janela supervisionando o trabalho da máquina
Fábrica da Faber-Castell, em São Carlos (SP) - Fabiano Cerchiari - 25.jul.00/Folhapress

Tantas as coincidências, emoções seriam mesmo inevitáveis. Posso ver, como se lá estivesse presente, a emotiva Sylvia em lágrimas. E, ainda que os alemães sejam conhecidos por sua rigidez e contenção, Bertha também há de ter se emocionado. Tanto que, em uma atitude que fugia ao figurino, convidou a recém-conhecida para um jantar, queria que o marido os conhecesse.

Pois foi assim que, no dia tal, precisamente às tantas horas —obedecendo a ortodoxa praxe alemã—, os três aportaram nos Ascherfeld.

Não sei como se desenrolou o jantar, se a comida era boa ou mesmo se tomaram algum daqueles horríveis vinhos alemães. O que sei é que a conversa fluiu —em português. Após a aposentadoria, Helmut tornara-se tradutor oficial da língua portuguesa e a cultivava.

Entremeada de lembranças de São Carlos, de lugares e de pessoas que todos conheciam, cada um contou sua história. A dos Ascherfeld era um bocado triste. A guerra não apenas impediu o retorno ao Brasil, custou também a morte do filho, não me lembro se lutando ou vítima de bombardeio.

À sobremesa, Bertha resolveu mostrar-lhes o filho. De uma gaveta, tirou uma caixa com fotos, escolheu uma delas e o apontou, ainda criança, na varanda de uma casa. Ao apanhar a foto, Sylvia empalideceu e foi às lágrimas. Não acreditava naquilo que via. Conhecia bem aquela varanda. Era a varanda da casa de seus pais em São Carlos, onde viveu e cresceu. Os Ascherfeld haviam morado lá até 1939.

Se esse relato causou arrepios e lágrimas em todos os que o leram em carta enviada na ocasião, imagine-se o que deve ter acontecido naquela mesa de jantar. Ela viajou milhares de quilômetros e atravessou o Atlântico para encontrar em Murnau, uma pequena cidade alemã, aqueles que a antecederam na casa que o pai comprou em 1941, ano do seu nascimento —a casa que abrigou a família por décadas, até a morte da mãe.

Na foto, é possível ver a praça, com várias árvores altas fazendo sombra numa estrutura circular de concreto. No fundo, prédios altos do centro de São Carlos. Não aparecem pessoas na praça
Praça Coronel Salles no centro de São Carlos - Silva Junior - 03.mai.12/Folhapress

A suma é que essa coincidência e as emoções que desencadeou resultaram em uma grande amizade que facilitou muito a vida na Alemanha e se estendeu por muito tempo depois da volta ao Brasil. Os Ascherfeld se tornaram uma espécie de cônsules do círculo familiar e de amigos. Por muito tempo, quem ia à Europa dava um jeito de visitá-los, levando dicionários, livros e revistas em português para Helmut. Se bem me lembro, ele gostava bastante da revista Playboy.

Sylvia Helena Nunes Brighenti era minha irmã. Morreu em fevereiro de 2021. Salvo pela carta mencionada, não me consta que tenha escrito esta história. Eu a escrevi por ela.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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