Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu câncer

Um adiamento de férias me permitiu passar os últimos dias do meu pai ao seu lado

Juntos, lembramos do passado, conversamos e viajamos para dentro do coração

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Natalia Moriyama

Mora em São Paulo

Finalmente minhas férias estavam chegando e eu mal podia esperar: passagens compradas, hotel reservado e as malas prontas (tá bom, elas ainda não estavam exatamente prontas, mas, dentro da minha cabeça já estavam) para fazer uma das coisas que mais amo na vida – viajar sozinha, ou, com a minha melhor companhia.

Inicialmente eu planejava fazer uma viagem com meu pai – com quem eu não viajava junto há décadas, desde a minha adolescência, salvo engano. Mas, as agendas não se encontraram, decidi ir sozinha mesmo e meu pai se planejou para fazer o mesmo em março do ano seguinte. Paciência, nossas férias juntos teria que aguardar uma vez mais.

Faltava apenas uma semana para a tão aguardada viagem e a diretoria da instituição onde eu trabalhava me disse que um novo diretor iria chegar e queriam que eu postergasse minhas férias para dali a um ou dois meses, pois gostariam que eu o apoiasse em sua adaptação. Fiquei inconformada, mal-humorada. Afinal, eu nem me reportava à Diretoria Administrativa Financeira. Tá bem, um novo diretor estaria começando, mas, afinal, o que eu tinha a ver com isso?

Mala de viagem aberta com itens femininos visíveis
Mala de viagem com itens femininos - Gabriel Cabral - 07.mai.19/Folhapress

Me falaram que eu não era obrigada, mas seria muito importante se eu pudesse fazer isso. Eu fiquei bastante tentada a responder que não, minhas férias eram inegociáveis. Mas, o fato é que as cancelei, não sem antes negociar para que eu pudesse, então, gozar de meus dias de descanso imediatamente após o Carnaval. E assim aconteceu. Desfiz as malas nos meus pensamentos, cancelei tudo e voltei a trabalhar. Veio janeiro e o tal diretor estava adaptado e eu podia, finalmente, iniciar minha contagem regressiva.

No meio desta contagem regressiva, soube, de supetão, que meu pai não estava se sentindo muito bem e precisava fazer alguns exames. Ele agendou algumas consultas, mas não quis me dar muitos detalhes.

Quando finalmente fevereiro trouxe o Carnaval para me animar, o que aconteceu foi exatamente o contrário. Minha prima, médica, que estava acompanhando meu pai em suas consultas e exames, me chamou para um café e me contou (a contragosto dele) que o caso era grave e delicado e tudo indicava que se tratava de um tumor de cabeça do pâncreas, tido como um dos mais agressivos. Ele havia pedido à Taís que não contasse a nós, os filhos. Ela optou por contrariá-lo, sabendo da gravidade e da importância da presença e do apoio da família.

Logo no meu primeiro dia de férias eu o levei para seu último exame. Logo veio a confirmação do diagnóstico e a corrida contra o tempo para agendar uma cirurgia para tentar retirar o tumor o mais rápido possível.

Os dez dias de espera que antecederam sua internação foram devastadores para o meu pai. Ele emagreceu rápido, sua pele ficou amarelada pela icterícia, com náuseas e tomado pela fadiga e apatia. Ele não queria comer nem sair de casa, estava visivelmente deprimido (o que era inédito para aquele homem que eu nunca havia visto esmorecer). Usei todas as possibilidades que a minha criatividade permitiu para tentar animá-lo: eu o levei para ver seus irmãos, cuidei da sua alimentação, preparei seus pratos preferidos, ou ia buscar um de sua lista de restaurantes favoritos. Foram as férias que mais estive com ele, de fato, nos últimos 30 anos.

Desde que meus pais se separaram, 27 anos antes, tivemos poucas oportunidades de convívio, ele era um workaholic inveterado e viajava sempre e muito. Levá-lo ao aeroporto costumava ser a desculpa preferida para estarmos um pouquinho juntos, ou um rápido almoço na padaria.

Nessas férias foi diferente. Pudemos, em 10 dias, lembrar do passado, ver fotos, conversar assuntos sérios, polêmicos, engraçados, amenos e serenos. Fiz massagem nos seus pés, fizemos planos para as próximas férias e ficamos em silêncio apenas, aproveitando o prazer de simplesmente estarmos juntos.

Dia 23 de fevereiro chegou, eu o internei. Enfrentei a ansiedade de 6 horas de cirurgia dois dias depois. Eu o vi acordando e reclamando de tudo como era de costume. Suspirei aliviada... Meu pai estava de volta.

Então minhas férias acabaram, mas eu o visitava todos os dias, dentro do que a UTI permitia. Testemunhei sua melhora e estava ao seu lado quando começou a ter febre e foi levado para uma segunda cirurgia. Seu enfisema pulmonar não deixou que ele conseguisse extubar, precisou de hemodiálise, transfusão de sangue, entrou em sepse, em delirium... Segurei firme a sua mão todas as vezes e, ainda que inconsciente, conversei com ele todos os dias.

Em 28 de março, sofreu uma parada cardiorrespiratória. Pude me despedir dele. Prometi que cuidaria de sua família e lhe fiz um último pedido: que se ele fosse embora, não o fizesse no dia seguinte, 29, aniversário da minha mãe. Gentilmente, ele me atendeu, e partiu às 4h do dia 30 de março de 2016.

Nem que eu quisesse eu conseguiria ter planejado melhor estas férias, as últimas que pude passar junto ao meu pai, viajando para dentro do coração, do afeto e da gratidão.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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