Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Casos do Acaso

Depois de fim de namoro em encontro evangélico, entrei por engano na mira da polícia

Estava em um posto com amigos na entrada de Goiânia quando policiais suspeitaram que éramos assaltantes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Lucas Vidigal

Redator e roteirista (@lucasvidee)

O ano é 2010. Era um domingo, e eu estava em Brasília prestes a me separar da minha primeira namorada. Era um término com aviso prévio, ninguém foi pego de surpresa. A relação era boa, só a distância que pecava. Morávamos em cidades diferentes e, nesse ano, ficaríamos ainda mais longe um do outro: ela se mudaria para fora do país e cada um seguiria seu destino.

Estávamos aproveitando os últimos minutos juntos, entre lágrimas, abraços e beijos controlados pelos tutores religiosos. Isso mesmo, era o dia do adeus e nos encontrávamos presos em um encontro nacional de juvenis da nossa igreja (evangélica), cercados por algozes do libido, adultos treinados para apartar qualquer faísca entre os adolescentes.

O monitoramento era tão rigoroso que se você estivesse nos longos cultos e quisesse ir ao banheiro, tinha que pedir autorização. E mesmo autorizado, um monitor ainda te acompanhava e quase cronometrava o seu tempo.

Deu raiva me despedir do meu primeiro amor sem poder dar um beijo freestyle, deu raiva ter o mijo cronometrado, deu raiva ouvir sermão por mais de duas horas, deu raiva estar naquele ambiente castrador. Só me restava ir embora dali. No caso, eu ia pra Goiânia e tinha duas opções: ir de ônibus ainda com os monitores me intimidando ou ir em um carro com dois amigos sem ninguém no nosso pé.

Ilustração de um cigarro sendo apagado num cinzeiro branco com um fundo azul
Ilustração para a coluna Casos do Acaso - Lucas Vidigal

Saímos vazados dali no carro do meu amigo. A sensação era de estar fugindo de um reformatório. Pegamos a estrada, fui de vidro aberto sentindo o vento na cara, ouvindo música nada religiosa e finalmente tendo um respiro.

Paramos no primeiro posto de gasolina que apareceu para comprar isqueiro e um maço de Marlboro. Eu estava sedento por um cigarro. Se eu fumava? Não fazia ideia como era, mas aquele moralismo todo que tinha vivido naqueles dias me deu vontade de várias coisas que nunca tinha pensado em experimentar.

No primeiro trago, já batizei a garganta com uma tosse desgraçada. Depois disso, só fiquei brincando com a fumaça na boca e fingindo ser um fumante com anos de experiência. Fazia a pausa, caras e bocas, até a minha pegada no filtro estava convincente. É impressionante como a gente se acha rebelde com um cigarro na boca. Fumei alguns em uma tacada só, fiquei empolgado em soltar fumaça por aí. O problema era que o vento soprava aquela fumaça de volta para dentro do carro e nos defumava.

A noite estava dando as caras quando entramos no trevo de Goiânia. Apesar de todos os vidros estarem abertos naquele Peugeot 206 preto, a gente ainda cheirava a tabaco. Havia um agravante: estávamos indo jantar na casa da avó do meu amigo, uma das matriarcas da igreja.

Tínhamos que nos livrar de algum jeito daquela fragrância pecaminosa. Paramos em um posto meio abandonado na rodovia para trocar de roupa, passar um desodorante, lavar as mãos, os braços, o rosto e tudo que ainda cheirasse a fumaça.

O lugar estava deserto, mas tinha um banheiro aberto. Paramos o carro e abrimos o porta-malas para pegar o sabonete e as roupas limpas. Meus amigos foram primeiro no sanitário e eu fiquei de vigia.

Do nada, explodiu um farol alto em cima de mim. Fiquei confuso e saí do carro pra ver o que era. De repente, escuto um grito: "Mão na cabeça". Era uma viatura da polícia. Os policiais estavam em posição de ataque, comigo na mira e eu não estava entendendo porra nenhuma.

Meus dois amigos saíram do banheiro e também entraram na mira da polícia. Um deles tinha um sabonete na mão que tinha acabado de abrir, estava novinho e não era qualquer sabonete, era um Dove com hidratante. Um dos policiais berrou para ele jogar aquele objeto não identificado no chão. Não conformado com o prejuíz,o meu amigo ainda tentou argumentar que era um Dove e tomou um baita esporro.

Os policiais nos mandaram colocar a mão atrás da cabeça, cruzar os dedos e ir para a direita. A princípio, esse era o comando, só que no meio do nervosismo eu cruzei minhas mãos atrás da cabeça e estendi os braços para a direita, parecia que eu estava fazendo aula de alongamento.

​Depois disso, os policiais perderam a paciência com o nosso amadorismo. Se aproximaram, revistaram o carro, não encontraram nada e nos contaram que tinha acabado de acontecer um mega-assalto em um hipermercado. Os assaltantes fugiram em um Peugeot 206 preto, como aquele do meu amigo. Chegou outra viatura em seguida, mas a abordagem já tinha acabado. Sem Dove, só troquei a camiseta e seguimos nosso rumo.

No caminho do posto até a casa da avó do meu amigo, passamos por mais algumas viaturas que nos encaravam, checavam a placa e desencanavam de nos abordar. Na tentativa de não sermos incriminados pelo cheiro de cigarro, acabamos sendo enquadrados por um mega-assalto que —por coincidência ou castigo divino— aconteceu pouco antes de chegarmos em Goiânia em um carro idêntico ao da quadrilha. Nada mal pra quem começou o dia terminando o relacionamento em um encontro religioso.

E assim, sem perceber, foi minha estreia na vida adulta.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.