Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu casamento LGBTQIA+

Namoro hoje com a colunista cujo texto me ensinou a lidar com meu divórcio

Quando a encontrei, foi como se uma lava lambesse meu corpo por dentro

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Paola Lins

Quando uma das minhas grandes amigas se separou, em junho de 2016, eu sabia que só o tempo a faria se curar daquela dor atroz. Mas sabia também que enquanto esse tempo não chegasse —ou até para acelerar sua passagem— ela poderia encontrar algum consolo nas palavras de quem já tinha feito a travessia e estava lá do outro lado.

Decidi mandar para ela um texto que eu tinha lido um ano antes, escrito pela minha colunista predileta.

O texto falava sobre a separação usando uma metáfora poética e grandiosa: a morte de uma estrela. Ao contrário do que parece, e do que eu achava, quando uma estrela morre, não apaga como um vaga-lume descarregado. Ela se exibe em um último espetáculo explosivo de luz e energia.

A nebulosa do Caranguejo é composta principalmente dos restos de uma supernova (uma explosão estelar) - J Hester/NASA/ESA

A minha colunista predileta conseguiu transformar o fim do seu casamento de dez anos com sua mulher em uma história sobre a transformação do sentimento, a transfiguração do encerramento de um amor arrebatador em algo que podia ser vivido como uma experiência ainda mais sublime. Para mim, a sugestão de que o amor não morre, mas se expande para se tornar algo ainda maior, honra o que as amantes viveram, e parece amenizar um pouco o amargor da dor.

Minha amiga agradeceu o carinho muito emocionada. Ela estava à flor da pele. O texto parecia ter lhe dado palavras para sentimentos nebulosos, além de uma certa dignidade ao processo de separação, que muita gente enfrenta como um fracasso retumbante. O buraco dela foi fundo, mas com o passar dos meses, ao sair dele aos poucos, o que aconteceu foi lindo de se ver: minha amiga renascia cheia de amor-próprio e de tesão pela vida.

Ela estava voltando a viver intensamente e eu mal conseguia acompanhar todos os jantares, sambas, cervejinhas. Mas não demorou muito para que ela voltasse ao centro dos meus afetos.

Em dezembro daquele mesmo ano, seis meses depois da separação dela, meu casamento de quase dez anos com meu marido chegou ao fim. Eu fiquei devastada. Lembro de ter lido um livro que me deu repertório para dar sentido ao que estava sentindo: "Divórcio", de Ricardo Lísias. O autor descrevia uma inadequação e mal-estar permanentes, que eram experimentados no corpo como se ele estivesse em carne viva.

Essa imagem, de um corpo sem pele, totalmente exposto a qualquer perigo e sangrando, era como eu me sentia. Quebrada e pequena, foi a minha vez de ganhar um colo da minha grande amiga.

Numa das nossas intermináveis conversas sobre o fim, onde a tentativa de entender o que aconteceu fazia as hipóteses andarem em círculos atrás de morder o próprio rabo, ela me esperou terminar uma frase, pegou o celular e me mandou uma mensagem. Eu perguntei por que ela fez aquilo se estávamos ali juntas. Ela me pediu para ler. Quando eu abro o celular, encontro o texto da minha colunista predileta.

"Chegou a minha vez de te lembrar que o fim pode ser uma transformação, e principalmente que a dor medonha vai passar". Isso ela nem precisava me dizer. Sua existência era uma prova disso. Já apaixonada e seguindo em frente, sua simples presença me dava esperança. Eu olhava para ela e pensava: eu também vou sair dessa.

Passados alguns meses, eu não estava refeita, mas a vida tinha voltado a pulsar. A dor da lembrança que ocupava todos os minutos de todos os meus dias foi se transformando num aperto no peito que me visitava em alguns momentos do dia. Às vezes, até tinha a alegria de passar dias inteiros sem dar com ela.

Eu saía bastante e encontrava pessoas. Não queria me envolver ainda, mas tinha uma sede enorme de tudo. Estava me jogando. Entrei num novo projeto de trabalho, com funções totalmente diferentes das que eu estava habituada. Era uma aventura, e me fazia sentir muito viva.

Seis meses depois da minha separação, em junho de 2017, recebo uma notícia que me chacoalhou. Minha colunista predileta foi convidada para trabalhar no projeto em que eu estava. A ideia de conviver com essa mulher num ambiente em que eu precisasse funcionar intelectualmente me transtornou. Será que vou conseguir ser discreta? Como vou manter o prumo para ser uma colega de trabalho sem me converter na fã abobalhada?

Ainda tomada por essas inquietações, finalmente chega o grande dia —para mim— de conhecer pessoalmente aquela mulher que eu tanto admirava. Estávamos reunidos os colegas da equipe do Rio de Janeiro numa sala aguardando as novas colegas de São Paulo para uns dias na serra, onde faríamos um retiro criativo.

Minha colunista predileta chegou junto com a filósofa mais relevante do debate público nacional naquele momento, e que eu também admirava muito. Mas não consegui prestar atenção na filósofa. Era como se eu tivesse sido invadida por uma lava quente que lambeu meu corpo por dentro. Eu tinha certeza de que alguma coisa começava ali, ao mesmo tempo em que eu não sabia de mais nada.

Seis meses depois, minha colunista predileta era minha namorada. Começamos a namorar dois dias antes de completar um ano da minha separação. Estamos juntas até hoje e eu ainda choro com o seu texto sobre as estrelas. Hoje é um choro ambíguo, com admiração pela sua beleza e também com um pouco de medo de que nossa história tenha o mesmo fim.

Na última vez em que isso aconteceu, ela estava comigo e, vendo minhas lágrimas, me disse algo que ela leva para a vida como mantra: "A vida não erra. Quem vai saber se aquele texto sobre as estrelas que contava a dor mais brutal que ela já tinha experimentado não tinha o propósito de nos unir?".

Eu não sei se a roteirista das nossas vidas na verdade está trabalhando bem focada e se diverte às nossas custas com isso que chamamos de acaso. O que eu sei é que mesmo com medo de cair no buraco, eu sigo em frente. Que o universo me livre de perder a chance de viver um grande amor e de me tornar um texto lindo pelas mãos da minha colunista predileta.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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