Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Só achei minha bolsa e documentos furtados por ter pedido uma pizza fiado

Pelo telefone, o atendente da pizzaria disse ter informação sobre os meus pertences

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Maria Cristina Cardoso Pereira

Onze graus e eu só conseguia olhar para o painel do carro. Os reloginhos me enfeitiçavam. Nenhum barulho, os vidros fechados, o conforto do ar-condicionado. De repente, o sobressalto: como eu tive coragem de fazer aquela dívida?

Desliguei o ar, na esperança de economizar combustível. Estava tão quente que mudei de ideia. Eram 15h20 e eu já estava parada naquele sinal há muito tempo. O coração começou a bater forte e eu passei a sentir o frio na barriga. E se eu chegasse atrasada?

Foto mostra vários carros parados em meio a um engarrafamento na via
Trânsito na avenida dos Bandeirantes - 31.ago.15 - Ernesto Rodrigues/Folhapres

Aquela era uma chance que tinha caído do céu. Uma amiga havia me indicado para uma vaga no setor de ensino de uma companhia aérea. Meu diferencial era já ter trabalhado no voo, um período ótimo na minha vida.

A lembrança supriu parcialmente minha insegurança —eu estava meio enferrujada no vocabulário aeronáutico—, mas a dívida me jogava para a realidade. Tirei da bolsa o boleto que venceria em uma semana e fiquei olhando para ele.

O silêncio do ar-condicionado foi quebrado por uma lufada de vento e uma mão. Meu primeiro pensamento foi lembrar uma situação vivida anos antes. O sujeito aproveitou que a janela da minha Brasília 1977 estava aberta e enfiou a mão nos meus peitos. Na ocasião, eu fiquei tão brava que, quando a mão subiu, passando pelo meu rosto, eu a mordi. O sujeito saiu gritando de dor, enquanto eu tentava mover a manivela do vidro.

Mas, naquele dia, a mão estava interessada na minha bolsa. Depois do susto, a primeira coisa que reparei foi o vidro espatifado no chão. Depois, vi que a mão tinha levado tudo, menos o boleto.

O prejuízo não tinha sido dos maiores, o carro tinha seguro, mas era a minha melhor bolsa, a melhor carteira, a melhor caneta —fora agenda, cartão, uns trocados, cheques e meus documentos. Era uma época em que celulares eram proibitivos e um pager —um aparelhinho que se levava na cintura para receber mensagens enviadas por telefone— seria um luxo acima do meu orçamento.

Voltei para casa e, de lá, disparei os telefonemas: o primeiro, para cancelar a entrevista. Os outros, para bloquear cheques e cartão.

Depois de horas no telefone, abri a geladeira. Vazia. Até o assalto, o plano era seguir para a entrevista e depois passar no supermercado. Peço uma pizza? Aí me lembrei da dívida. A razão falou mais alto e decidi pela de muçarela. Fiado.

Falar com a pizzaria demorou. A agenda estava dentro da bolsa e tive que pedir a lista telefônica emprestada da vizinha.

Liguei e comecei a contar a minha história. "Oi, sou a Maria Cristina, cliente de vocês. Eu fui assaltada e queria pedir uma pizza, fiado. O rapaz quebrou o vidro do carro e puxou minha bolsa. Entregam aqui? Posso assinar um vale?", perguntei.

O atendente ficou surpreso e pareceu mais interessado no assalto do que no pedido. No início dos anos 2000, aquele fora um furto arrojado e o Brooklin ainda era um bairro pequeno de São Paulo. Depois de algumas perguntas, quis saber em que ponto da avenida dos Bandeirantes o assalto tinha ocorrido.

"Quase esquina com a Guaraiuva. Levou tudo, cartão, dinheiro, cheque", falei.

"Guaraiuva? É que acabaram de contar esse assalto aqui na pizzaria", ele disse.

Foi então que ouvi uma voz, ao fundo: "Pergunta se a pessoa se chama Maria Cristina Cardoso Pereira".

"O menino está perguntando se a senhora se chama Maria Cristina…", o atendente emendou.

"Eu ouvi! Sou eu mesma."

"Fala para ela que os documentos estão na delegacia do Itaim", a pessoa ao lado dele emendou.

Pedi para falar com o garoto. Era um menino de 13 anos. Passava de bicicleta e assistiu quando o assaltante quebrou o vidro, puxou a bolsa e saiu correndo, atirando na calçada o que não lhe interessava. O garoto, então, foi recolhendo o que era dispensado: documentos, carteira, agenda, até que viu a bolsa ser arremessada em um terreno baldio. Levou tudo para casa e o pai o acompanhou até a delegacia. Na volta, passaram na pizzaria.

Em uma hora eu estava na delegacia para contar a história, quase inverossímil. Estava tudo lá, menos a caneta, o dinheiro e as duas folhas de cheque, cruzadas. Eram umas 11 da noite quando peguei o carro para voltar para casa, pensando na pizzaria ainda aberta. Alguns dias depois, recebi um telefonema da companhia aérea remarcando a entrevista.

Quando soube que tinha sido aprovada na seleção —eu trabalharia alguns anos no ensino de italiano para o pessoal de bordo—, liguei para o meu pai para contar minhas peripécias e pedir para ele "inteirar" o dinheiro da prestação do carro.

Meu pai adorava histórias de coincidências, mas achava que eu havia dado um passo maior que a perna com aquela dívida. Depois de ouvir com atenção e fazer perguntas, ele pareceu orgulhoso: disse que tinha uma filha de sorte e estava feliz por eu ter conseguido o trabalho.

"Mas pai, e o dinheiro?"

Ele pensou um pouco, fez uma preleção sobre os riscos de se assumir dívidas sem um bom planejamento, mas disse que depositaria no dia seguinte. Então, arrematou: "Você tem sorte, mas ganhar na loteria não ganha, né?".

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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