Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Frase que pichei para Rita Lee reapareceu 37 anos depois em exposição

Fiquei com as pernas bambas quando li na entrada do MIS o que tinha escrito no muro da casa do pai da roqueira

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Ana Ribeiro

Jornalista e autora dos livros ‘O Gosto da Vera’, sobre a atriz Vera Holtz, e ‘Descobrindo Lília Cabral’ (coleção Aplauso)

O carro do Beto tinha duas portas. A do passageiro não abria, a rota de entrada era pelo lado do motorista. O banco do motorista não levantava para quem ia sentar atrás. Acomodar três pessoas exigia uma certa ginástica. Não era o veículo ideal para uma fuga de emergência. Mas era o que tínhamos e, mais que isso, era o que garantia nossa liberdade e nossas infinitas possibilidades. Com ele, São Paulo era pequena para nós.

Eu tinha 16 anos, o Beto e a Solange um pouco mais do que eu. Éramos inseparáveis nos rolês dos fins de semana. Eu acabara de voltar de um ano de intercâmbio em uma cidade no interior dos Estados Unidos e estava achando tudo muito moderno naquela São Paulo dos anos 1980. O que levei comigo e trouxe comigo de volta foi a trilha sonora: fitas cassete com a discografia completa da Rita Lee.

Nos anos 1970, quando a barra da ditadura ficou pesada para os jornalistas, meus pais, ambos jornalistas, quiseram sair de São Paulo e aceitaram um convite para reformular um jornal em Ribeirão Preto. Eu e minha irmã mais nova, Teté, nos mudamos emburradas para uma cidade estranha.

O que nos salvou foi a casa da frente (alô, Panicos!), onde vivia uma família com 8 filhos de todas as idades, muitos primos e circulação constante. No meu aniversário de 10 anos, um desses primos, o Reinaldo, me levou de presente um vinil que está no primeiríssimo lugar da lista de discos que eu quase furei de tanto ouvir: "Fruto Proibido", de 1975.

Mesmo com todas as descobertas musicais que fiz nos Estados Unidos, Rita Lee nunca deixou o topo da minha parada. O programa daquele fim de semana seria uma homenagem a ela.

Pela lista telefônica, tinha descoberto o endereço do pai dela, dr. Charles Jones, e decidi deixar uma frase pichada no muro da casa dele na rua Joaquim Távora, na Vila Mariana. Beto e Solange toparam na hora.

Tudo aconteceria de madrugada. Eles ficariam dentro do carro com o motor ligado. Eu desceria com o spray, escreveria a frase na parede, voltaria ao carro mergulhando pela janela, o Beto acelerava e a gente se mandava. Os medos eram muitos. Polícia. Vizinhos. Alguém da família da Rita Lee nos surpreender... E foi com o coração aos pulos de terror e emoção que escrevi no muro branco com minha lata de spray: "Rita, pra você, a agilidade do gato e o brilho da estrela". Minha mensagem adolescente de amor por Rita Lee estava registrada para toda a cidade ver.

Corta para 37 anos depois. Fui com uns amigos ver a exposição da Rita Lee no MIS. Logo na entrada do museu, uma parede pintada de azul trazia a estampa da minha frase, letra por letra (sobrou um S no "das estrelas"). Foi como se um raio tivesse me atingido na cabeça. A sensação deve ter sido a mesma de quando escrevi no muro naquela madrugada: pernas bambas, coração acelerado, mãos tremendo. A minha frase na parede do museu!

Uma das monitoras da exposição, bem jovem, vendo que a nossa turma tinha tanto comentário a fazer sobre aquele escrito, quis saber o que acontecia. Eu contei a história. Ela se espantou, já que a exposição não trazia nenhuma explicação sobre a origem daquela frase. Não me importava: ela era minha e estava lá.

Eu já tinha contado a história dessa frase muitas vezes. Uma delas, para a própria Rita Lee. Eu e a Barbara, que era minha namorada na época, fomos a um show da Rita.

Éramos convidadas no camarote do dono da casa de espetáculos e, ao fim do show, ele disse: "Se quiserem ver a Rita, é só abrir essa porta". A Barbara ainda ensaiou recusar, mas eu nem quis ouvir: "Nós vamos!", determinei. De fato, era só abrir a porta, andar por um corredor e paramos diante do camarim da Rita Lee.

Ela surgiu, sorriu para nós, mandou entrar. Rita e Barbara já se conheciam. Contei a minha história. Ela chamou o Roberto. Contei de novo. Ela nos mostrou o Mike, seu cachorro cantor, que estava no camarim também. Barbara descreveu esse encontro na coluna dela nesta Folha, no dia 1º de março de 2002.

Deparei outras vezes com o meu grafite, em uma passagem do musical estrelado por Mel Lisboa, em uma citação em alguma das biografias da Rita Lee. O dia do museu, porém, foi o mais emocionante. Não era só uma menção, era uma reprodução.

O resto da turma que estava lá comigo não podia ter mais a ver com aquele momento. Tinha a Barbara, que virou minha grande amiga, e a Irene, minha vizinha na adolescência. A gente se conheceu na piscina do condomínio em que morávamos e, logo na primeira conversa, falamos da Rita Lee. Naquela mesma tarde, levei minha pasta de recortes da Rita Lee para mostrar para ela; ela me mostrou a pasta de recortes dela. Empatamos.

Achei a Irene tão legal que a apresentei para um grande amigo da faculdade, o Warté. Eles acabaram se casando, tiveram dois filhos, Pedro e Clara. Pedro se casou com o Marcio. Pois no dia do MIS eu estava acompanhada da Barbara, da Irene, do Warté, do Pedro e do Marcio.

Rita está quieta na casa dela no mato, cercada dos bichos, da família e das plantas. Eu a sigo no Instagram e adoro quando ela aparece. E sigo desejando tudo tudo tudo de melhor para ela.

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