Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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As consequências do aborto negado

Efeitos adversos de restrições ao procedimento já começam a ser sentidos

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A indicação de um novo membro para a Suprema Corte Americana promete muitas mudanças no entendimento sobre temas polêmicos, desde posse de armas a imigração. Ainda que preocupações momentâneas estejam relacionadas a uma indicação que acontece às vésperas de eleição presidencial, um colegiado majoritariamente conservador coloca em dúvidas o direito ao aborto que foi estabelecido em 1973, no emblemático caso Roe vs. Wade.

Na ocasião, uma mulher solteira, de 21 anos, grávida do terceiro filho, que adotou o pseudônimo Jane Roe na ação, desafiou a constitucionalidade da lei do Texas que proibia o aborto eletivo. Em decisão acachapante, 7 a 2, a Suprema Corte julgou a lei como inconstitucional com base no direito à privacidade, que delega às mulheres o direito de decidir sobre a gestação.

A decisão não conferiu direito absoluto ao aborto, sendo permitida a imposição de restrições por parte dos estados a partir do segundo trimestre de gestação.

São muitos os descontentes com a forma como foi fundamentada a legalização do aborto nos EUA, incluindo Ruth Bader Ginsburg, última ocupante do cargo agora vacante na Corte, e defensora incisiva dos direitos das minorias e da igualdade entre os gêneros. Não que sua posição pessoal fosse contra o direito ao aborto, mas, para ela, uma defesa mais contundente deveria abordar questões relacionadas à igualdade entre os gêneros, e não apenas o direito à privacidade.

Nesse aspecto, já está documentado o enorme e persistente declínio no salário e emprego das mulheres seguido do nascimento de filhos, sendo bastante legítimo associar parte das desigualdades entre os gêneros a este motivo. Mais controverso é atribuir ao aborto a melhor forma de mitigar uma gravidez indesejada, já que o uso de anticoncepcionais funciona como alternativa viável e fácil, tendo sido por muitos anos associado à expressiva emancipação socioeconômica das mulheres que ocorreu nos anos 1960 e 70.

Essa visão foi recentemente contestada por Caitlin Knowles Myers no renomado Journal of Political Economy de 2017, abrindo frente para interpretação alternativa sobre a importância da liberalização do aborto na década de 1970 para as mudanças observadas.

Se de um lado a pílula garante maior controle sobre consequências não planejadas do sexo, de outro sua taxa de fracasso chega a atingir 9% em um primeiro ano de uso, constituindo método bastante imperfeito de controle. Além disso, é plausível que o ganho da prevenção tenha sido mais do que compensado pelo aumento da atividade sexual entre os jovens, especialmente no período em questão.

A análise mostrou que a legalização do aborto para jovens mulheres foi responsável por um terço do declínio na probabilidade de maternidade na adolescência (antes dos 19 anos) e pela metade da queda nos casamentos que acontecem em decorrência de uma gravidez.

Nas palavras de Myers, as profundas transformações sociais e econômicas da época, via controle da fecundidade, são muito mais decorrentes do “poder” da liberalização do aborto, do que do “poder” da pílula.

Ainda hoje, 45% das concepções nos EUA são não planejadas —18% delas são totalmente não desejadas—, e a incidência chega a ser duas vezes maior entre as mulheres pobres. 42% das concepções não planejadas terminam em aborto.

Na contramão da liberalização que ocorreu na década de 70, sucessivas restrições de acesso ao aborto vêm sendo implementadas nos últimos anos —como restrições ao procedimento de acordo com idade gestacional, o aumento do tempo de espera para a realização do procedimento, o fechamento de clínicas e o aumento das distâncias percorridas para o acesso.

Os efeitos adversos já começam a ser sentidos, incluindo impactos financeiros expressivos para aquelas cuja opção de escolha está sendo negada, como o aumento do endividamento, da inadimplência e falência pessoal (Miller et al. 2020).

Submeter mulheres a um tratamento diferenciado com base na sua situação gestacional, que é o que está acontecendo aqui, é negá-la tratamento igualitário perante a lei.

Foi exatamente isso o que disse Ginsburg em sua audiência de confirmação para a Suprema Corte Americana em 1996.

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