Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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Descrição de chapéu Auxílio Brasil

Empréstimo no Auxílio Brasil é troca de dois jantares por um almoço

É pouco evidente que um consignado que compromete valores de subsistência mínima seja um bom caminho

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Recém-aprovado em ambas as casas do Congresso, mas aguardando sanção presidencial, o empréstimo consignado para os beneficiários do Auxílio Brasil é a mais nova mudança na rede de proteção da população em vulnerabilidade. À primeira vista, a ideia parece promissora: o acesso ao crédito amplia o conjunto de escolhas das famílias pobres, deixando que cada uma delas avalie suas próprias necessidades nas decisões de endividamento. Considerando que pagamento é descontado diretamente do benefício –isto é, o risco de inadimplência é menor–, as taxas de juros neste tipo de empréstimo deveriam ser mais atrativas que as praticadas no mercado.

Mas apuração preliminar feita nesta Folha e estimativas do próprio governo indicam que os juros para esta modalidade devem chegar a 79% ao ano. Em comparação, as taxas consignadas para aposentados do INSS variam de 20% a 30% ao ano, cerca de duas vezes a taxa de referência da economia (Selic). O diferencial indica que há risco de inadimplência maior entre os beneficiários do Auxílio, já que há enormes incertezas sobre o valor do benefício ao longo do tempo –como a parcela mensal, cujo mínimo de R$ 600 é temporário e vale apenas até o final de 2022–, a permanência das famílias no programa ou mesmo eventuais mudanças nas regras do Auxílio Brasil e do consignado.

As maiores críticas ao direcionamento de crédito aos pobres vêm justamente do fato de que os custos deste serviço financeiro são muito elevados para essa parcela da população, considerando as baixas perspectivas de inserção no mercado de trabalho e de ganhos adicionais de renda que possam ser usados para o pagamento da dívida, já que os beneficiários dependem dos auxílios para necessidades básicas. Dito de outra forma, é bastante difícil argumentar a favor da suavização do consumo ao longo do tempo para famílias que vivem em condições mínimas de subsistência.

Famílias do Auxílio Brasil terão R$ 200 a mais de agosto a dezembro - Gabriel Cabral/Folhapress

Mas se as condições de empréstimo que se configurarem neste mercado forem de fato tão desfavoráveis, o que levaria os beneficiários do Auxílio a aderirem a esta modalidade de crédito predatória? Uma possibilidade é que as pessoas têm diferentes níveis de compreensão sobre como estabelecer um relacionamento saudável com produtos financeiros. No caso dos beneficiários do Auxílio, a baixa instrução, aliada a necessidades prementes, oblitera a racionalidade no uso consciente do crédito consignado.

Esta visão está em linha com os últimos resultados do Pisa (2018), que mostram que 68% dos jovens de até 15 anos não alcançaram o nível básico em matemática, considerado pela OCDE o mínimo necessário para que eles possam exercer plenamente a sua cidadania.

O próprio Banco Central, em seu relatório de Cidadania Financeira, ecoa a visão de que a oferta de produtos e serviços financeiros aos cidadãos em situação de vulnerabilidades precisa vir acompanhada de iniciativas que busquem mitigar riscos relacionados à não compreensão e ao baixo conhecimento desses clientes para análise e tomada de decisões financeiras.

Pelas estatísticas do relatório, a taxa de inadimplência é maior entre os mais pobres, e o comprometimento de 50% da renda com serviços de dívida (um indicador do endividamento de risco) atinge 12,3% da população endividada que recebe até R$ 1.000 por mês.

É pouco evidente que um empréstimo consignado que compromete valores de subsistência mínima das famílias pobres no futuro seja um bom caminho a ser perseguido. A oferta de crédito consignado para esta população pode ser deletéria ao bem-estar dos beneficiários mesmo quando expande suas opções de escolha.

Ele permite que os beneficiários do Auxílio façam a incoerente troca de dois pratos de comida no futuro por mais um prato de comida no presente. Será que este tipo de antecipação de recursos, frente a uma expansão focalizada das assistências para quem precisa, faz sentido? Como justificar a antecipação dos recursos do Auxílio Brasil em condições tão desfavoráveis, cujos efeitos se fariam sentir apenas ao longo dos próximos meses? Certamente não parece ser uma política em prol dos mais pobres.

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