Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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Desigualdade de gênero não acaba por força de lei

Tratar as empresas como algozes promete muito pouco para a convergência dos salários

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É extremamente fácil calcular o quanto (menos) as mulheres ganham em seus trabalhos em relação aos homens. Basta apenas comparar a média dos salários nos dois grupos. No Brasil, as mulheres recebem 78% dos rendimentos dos homens, conforme cálculo do IBGE. Essa simples estatística serve bem ao propósito de nos lembrar que, apesar dos avanços das últimas décadas, ainda falta muito para alcançarmos igualdade entre os gêneros no mercado de trabalho.

Há, entretanto, uma propensão um tanto quanto equivocada de inferir que o gap reflete um fenômeno discriminatório, que poderia ser combatido com uma política de igualdade salarial que estabelece multa para as empresas que pagam salários diferentes para homens e mulheres exercendo a mesma função, a exemplo do projeto de lei encaminhado para apreciação do Congresso na semana passada.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ministra Cida Gonçalves, em cerimônia de celebração do Dia da Mulher, no Palácio do Planalto - Gabriela Biló - 8.mar.2023/Folhapress

Toda e qualquer discriminação deve mesmo ser combatida, mas reduzir a desigualdade de gênero ao diagnóstico simplista de discriminação ignora que esse é um fenômeno muito mais complexo de escolhas e decisões tomadas ao longo de toda a vida, que vão desde as profissões que são escolhidas pelas mulheres, em quais indústria trabalham e em quais empresas fazem suas carreiras, até quantas horas e em quais momento do dia trabalham.

O fato é que o Brasil chega ao debate da igualdade salarial com ao menos 60 anos de atraso. Nos Estados Unidos, por exemplo, legislação semelhante foi tentada em 1963, e, no Reino Unido, em 1970, ambas com pouco sucesso, já que, além de a verificação do que constitui um trabalho de igual conteúdo ser difícil de julgar, não é na garantia de um pagamento igual para o mesmo trabalho que se dará a convergência dos salários. Muito mais relevante que pagar igual para uma mesma função é atacar as razões da baixa representatividade das mulheres em posições de liderança e em promoções para cargos de maior salário.

Alguns estudos recentes mostram que um dos maiores desafios para a convergência dos salários está na organização do próprio trabalho, que remunera mais as posições nas quais o trabalhador fica disponível para executar tarefas sob demanda, em qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana, incluindo fins de semana. Esse é um arranjo pouco demandado pelas mulheres, que preferem mais flexibilidade em contratos de menos horas, para dar conta da dupla de jornada de trabalho que se impõe àquelas que tem filhos.

O fenômeno da não linearidade, ou a penalidade na remuneração dos empregos exercidos em tempo parcial, conforme cunhado pela economista Claudia Goldin, decorre da demanda por um tipo específico de trabalho e não está diretamente associado a uma característica do trabalhador, apesar de prejudicar mais que proporcionalmente trabalhadores que demandam flexibilidade, como as mulheres.

De maneira semelhante, também está bem documentado que grande parte das divergências nas trajetórias profissionais das mulheres ocorre após o nascimento dos filhos, em um fenômeno que ficou conhecido como a penalidade da maternidade.

À primeira vista, pode até parecer que há pouco espaço para que políticas públicas consigam minimizar ou reverter as penalidades do trabalho menos flexível e da maternidade. Afinal, o trabalho flexível ou em tempo parcial é uma escolha dos trabalhadores, assim como quanto tempo cada pessoa aloca para os cuidados com os filhos é uma decisão de natureza privada.

Mas é possível que políticas públicas possam ajudar a construir um ambiente de trabalho mais igualitário, com incentivos maiores à substituição do trabalho —como na regulação trabalhista que incentiva a flexibilização do trabalho ou fomentando o uso de tecnologias para tornar o trabalho mais divisível, e os trabalhadores, mais bem substituíveis entre si— ou permitindo que homens e mulheres consigam compartilhar de forma mais equilibrada as responsabilidades no ambiente doméstico —como através do estabelecimento de licenças parentais.

É preciso reconhecer que as empresas são aliadas nesse processo e que políticas públicas podem, sim, ajudá-las na construção de um ambiente de trabalho mais igualitário. Assumir discriminação e tratar as empresas como algozes, conforme projeto de lei de igualdade salarial encaminhado ao Congresso, promete muito pouco para tão sonhada convergência dos salários entre homens e mulheres.

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