Celso Rocha de Barros

Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra) e autor de "PT, uma História".

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Celso Rocha de Barros

Jessé, Sérgio e Raymundo

Jessé tem razão em dizer que o conceito de patrimonialismo não equivale ao de corrupção

Em seu novo livro, “A Elite do Atraso”, o sociólogo Jessé de Souza propõe uma reinterpretação da história brasileira que ilumine nossos problemas políticos atuais. A influência do livro sobre a esquerda tem sido considerável, mas não é claro que Jessé e a esquerda estejam fazendo bem um ao outro.

Jessé tem razão, muita razão, em duas coisas: a desigualdade é um problema mais importante para o Brasil do que a corrupção. E tem gente que faz discurso sobre patrimonialismo para jogar a culpa de todos os nossos problemas no Estado.

O resto do livro não é tão bom.

Em primeiro lugar, para reafirmar sua originalidade ao propor tudo isso, Jessé dá uma boa avacalhada na história do pensamento social brasileiro. Quero supor, por exemplo, que a nota de fim sobre a obra de Francisco Weffort tenha sido digitada sem querer sentando sobre o teclado do celular. Tudo sobre a USP está errado.

Pessoas desfilando com fantasia de patos amarelos
Desfile da Paraiso do Tuiuti no Sambodromo da cidade do Rio de Janeiro, no Carnaval 2018. Escola falou da persistência da escravidão no país - Bruna Prado - 12.fev.2018/UOL

Em segundo lugar, sua leitura da tradição weberiana brasileira poderia ser mais generosa, para o bem de sua própria reflexão.

Jessé tem razão em dizer que o conceito de patrimonialismo, tal como aparece no grande fera Max Weber, não equivale ao de corrupção: os monarcas antigos usavam o dinheiro público como se fosse deles porque, de fato, essa era a regra. Corrupção é quando você faz isso sob um Estado burguês moderno. O patrimonialismo descreve, portanto, situações em que as esferas econômica e política ainda não são bem demarcadas como nas sociedades modernas.

Os autores que introduziram o conceito de patrimonialismo na análise da história brasileira, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, escreveram livros de história que tratavam justamente desse processo de diferenciação no caso brasileiro. Como em toda parte, ele foi longo, cheio de retrocessos, doloroso e incompleto.

Mas tanto SBH quanto Faoro tinham a esperança de que a democracia nos livrasse dos resquícios da tradição patrimonialista. Era, aliás, exatamente porque os socialdemocratas Faoro (ex-colunista de Carta Capital) e Buarque de Holanda (fundador do PT) contavam com o Estado para lidar com o legado da escravidão que pediam o fim da promiscuidade entre o Estado e a elite econômica.

Se o leitor tiver curiosidade, procure online o programa de governo do PT na eleição de 1989, fascículo sobre economia, último parágrafo da página 25 do PDF, para notar a influência dessa tradição de pensamento.

Até aí, tudo é debate de alto nível, bacana o Jessé ter puxado o assunto. O livro fracassa mesmo é na tentativa de iluminar nossos debates contemporâneos.

Há, por exemplo, uma classificação dos grupos que compõem a classe média brasileira. Jessé não nos explica que critérios utilizou na confecção da tipologia, mas é meio esquisito que o exemplo do grupo protofascista seja Deltan Dallagnol e Fernando Haddad exemplifique a classe média crítica. Daí em diante: Lava Jato como conspiração da CIA, auditoria da dívida, Globo controlada pelo FBI.

Em que pese a discussão teórica, portanto, Jessé nos oferece uma discussão muito pobre, muito vulgar, da política brasileira. E entender nossa política, como os companheiros Sérgio e Raymundo sempre souberam, é fundamental para entender por que o legado da escravidão nunca foi superado.  

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