Cida Bento

Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

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Discurso da meritocracia ignora 'bolha branca' e discriminação no mercado de trabalho

Trabalhar relações raciais e de gênero em instituições esbarra em pacto não verbalizado de fortalecimento entre iguais

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Há alguns meses, trabalhando com equidade e diversidade numa grande empresa, ouvi a seguinte frase de uma liderança da área de recursos humanos: “Se nossa empresa viveu por décadas líder do seu ramo sem precisar lidar com a questão dos negros, por que temos de falar sobre o assunto agora?”.

A liderança, uma jovem mulher branca, explicitava o desconforto de tratar da exclusão e da sub-representação de negras e negros em seu local de trabalho, ante a decisão da empresa de implantar uma política de equidade de raça e gênero.

O desafio de trabalhar as relações raciais e de gênero, interseccionadas, em instituições públicas ou privadas, esbarra no que considero um pacto narcísico, pacto este não verbalizado, de fortalecimento entre “iguais”. As escolhas frequentemente recaem sobre um mesmo perfil de pessoas, principalmente se os lugares forem de liderança, tomada de decisão e poder.

A resistência a mudanças nesse contexto é muito forte. A despeito disso, provavelmente pela pressão dos movimentos sociais e pela tensão crescente em nossa sociedade, vem se ampliando o número de instituições conscientes de que ser uma “bolha branca” em meio a uma sociedade extremamente plural e diversa é um prenúncio de uma sociedade cada vez mais violenta, instável e insustentável. Essas instituições buscam enfrentar, não sem tensão, a desigualdade.

Esse enfrentamento se consolida na realização de diagnósticos institucionais, que examinam a sub-representação de grupos discriminados nos lugares qualificados ou de decisão, explicitando processos de recursos humanos desiguais.

Focalizam ainda a comunicação, o marketing, a cadeia de valor e os serviços e produtos para que se tornem compatíveis com a diversidade das sociedades nas quais estão inseridas. Na atualidade, quase metade da população negra (46,9%) está na informalidade, enquanto entre brancos o percentual é de 33,7% (IBGE, 2019). A crise no mercado de trabalho atinge com mais força a vida de segmentos que, na última década, haviam conquistado mais espaço com políticas públicas e ações afirmativas.

As negras, em especial, com os menores salários e taxa de desemprego duas vezes maior que a dos homens brancos, são as principais prejudicadas, trabalhando em ocupações com menor proteção social, sem carteira, como terceirizadas ou no emprego doméstico. Por outro lado, cabe salientar que, de acordo com os dados obtidos nos censos que temos realizado em grandes instituições, mulheres negras que se encontram em processo de ascensão fizeram uso de bolsas de estudo, num percentual 30% maior do que os outros grupos.

Mais do que nunca, vale ressaltar que, pela primeira vez no Brasil, jovens negros e negras são maioria nas universidades federais —fruto das ações afirmativas da última década— pressionando por oportunidades qualificadas no mercado de trabalho.

O desafio não é pequeno, pois os “incluídos” que estão com a caneta na mão para tomar as decisões institucionais têm na maioria das vezes um perfil similar e reagem com o discurso da meritocracia ao serem convocados a discutir supremacia, privilégios, branquitude, exclusão, racismo, sexismo etc.

O argumento comumente utilizado de meritocracia implica não reconhecer a discriminação contemporânea e uma herança que contempla benefícios concretos e/ou simbólicos de um processo histórico de mais de 500 anos —dos quais quase 400 foram vividos sob a égide da escravidão negra—, que forjou, para os diferentes grupos, pontos de partida desiguais.

Ou seja, argumenta-se por meritocracia que não considera os diferentes pontos de partida. Portanto, promover equidade racial no interior das instituições, públicas ou privadas, é repensar os diversos processos já consolidados na cultura organizacional.

Essa atuação contribui para minorar o sentimento de injustiça experimentado pela maioria da população, gerado pelo recorrente aumento da concentração de renda e pela exclusão histórica de pessoas negras de espaços de decisão institucional.

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