Cida Bento

Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

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Acusações injustas contra negros têm de ser tipificadas como racismo, e os réus, punidos

'Cada um dá o que tem', minha mãe dizia quando pessoas acusavam outras injustamente e sem nenhuma comprovação

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Minha mãe sempre usava a expressão "cada um dá o que tem" em situações em que, injustamente e sem nenhuma comprovação, pessoas acusavam outras de terem cometido algum crime ou transgressão.

Ela dizia: "Se no comportamento das pessoas acusadas nada justifica a acusação, então o que está acontecendo é que os acusadores estão jogando sobre as outras pessoas algo que está dentro deles. Algo que faz parte deles".

Lembrei-me dessa expressão neste junho de 2021, observando que vem ganhando visibilidade na grande mídia o registro de boletins de ocorrência por pessoas negras em razão da falsa acusação de roubo.

Como no caso de Paulo, homem negro, servidor público federal que comprou um tênis numa loja de shopping em Cuiabá, em Mato Grosso, mas foi acusado de roubo por uma funcionária e agredido fisicamente por seguranças, tendo que apresentar a nota fiscal da compra.

Ou da empresária negra Juliane, acusada de pegar um vestido e constrangida por um fiscal de loja na zona norte do Rio, mesmo depois de ter aberto a bolsa e mostrado que não tinha nada.

Com a ampliação do debate sobre o racismo, pessoas negras acusadas injustamente de roubo têm buscado os órgãos públicos para as providências cabíveis. Mas nem sempre isso é possível.

No caso de Flávio Ferreira Sant'Ana, uma acusação injusta teve um desfecho trágico: jovem dentista negro, também havia sido "confundido" com um ladrão em Santana (zona norte de São Paulo), por um comerciante cujo dinheiro havia sido roubado momentos antes. Na sequência, o jovem negro foi abordado e executado sumariamente pela Polícia Militar, aos 28 anos. Após a execução, o comerciante voltou atrás e disse ter cometido um "engano".

Esses "enganos" ocorrem num país em que 83% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico são negros, como nos mostra a Defensoria Pública do Rio de Janeiro em estudo realizado com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege).

Também são negros 80% dos presos em flagrante no Rio de Janeiro, de acordo com a mesma Defensoria.

Na teoria da psicologia de massas, esse fenômeno social, coletivo, pode ser chamado de projeção e abarca a ideia de que, em tempos de sérias crises econômicas e sociais, como as que estamos vivendo no Brasil, segmentos da sociedade buscam um "bode expiatório" que possa ser culpabilizado e punido. Embora esse comportamento social ante a população negra seja crônico no Brasil, nos últimos anos cinco anos a situação se agravou muito.

Em paralelo a esses acontecimentos, ao ligar a televisão nas últimas semanas, é possível constatar na CPI da Covid dezenas de gestores públicos que não são negros, mostrando, muitos deles, em seus depoimentos, as responsabilidades que têm na triste marca de mais de 500 mil brasileiros mortos, seja por ação, seja por omissão no enfrentamento da pandemia.

Ou seja, no caso, a maioria dos suspeitos são homens, brancos, de meia-idade, em posições de liderança institucional, que habitualmente não são vistos como criminosos.

O enfrentamento do racismo estrutural que se constata nas acusações injustas contra negros exige que esses casos sejam tipificados como racismo e que os réus sejam punidos.

Exige ainda que as instituições sejam analisadas, modificadas em suas estruturas, processos, programas, normativas, modo de funcionamento, perfil homogêneo de suas lideranças, enfim nos fatores que contribuem para definir quem são a priori os "mocinhos" e os "bandidos" da sociedade, os que têm "mérito" para gozar de privilégios e os que serão humilhados e mortos.

É o caminho possível para a reconstrução de uma sociedade baseada na cidadania, na justiça e na dignidade humana.

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