Claudia Costin

Diretora do Centro de Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

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Claudia Costin

O padre e a pedra

Com uma marreta, ele começou a derrubar as pedras sob o viaduto em São Paulo

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Conheço, há muitos anos, o padre Julio Lancellotti, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, e vi-me recentemente pensando sobre como o seu trabalho deve ter decuplicado agora que tantos perderam seus empregos, fontes de renda e esperanças, com a crise econômica que acompanhou a Covid-19.

Alguns não têm mais casa, outros não se sentem em condições de voltar para suas residências sem trazerem dinheiro para garantir alimento à mesa para todos. Isso se tornou ainda mais grave com o fim do auxílio emergencial, num contexto em que crianças não estão recebendo mais a merenda nas escolas.

O número de moradores de rua na cidade de São Paulo já vinha crescendo no período imediatamente anterior à pandemia. Dados do Censo da População em Situação de Rua de 2019 mostravam que havia então 24.344 pessoas nessa condição, majoritariamente negros (70%). Mas o que me chamou mais a atenção foi o seu crescimento. Houve um aumento de 60% no número de moradores de rua do censo de 2015 para o de 2019. Não foram divulgados números mais recentes, mas as imagens falam por si só.

Padre Julio Lancellotti
Padre Julio Lancellotti com as pedras instaladas sob o viaduto em São Paulo - Henrique de Campos

Nesse contexto, alguém considerou oportuno colocar paralelepípedos debaixo de dois viadutos na zona leste, para impedir que moradores de rua pudessem lá se abrigar. Isso, no imaginário de tecnocratas, talvez pudesse impedir que as pessoas tivessem que ser confrontadas com cenas da triste realidade em que vivemos, mesmo que prejudicassem a quem já perdeu quase tudo.

Mas o padre não aceitou esse acinte. Com uma marreta na mão, começou a derrubar as pedras fincadas debaixo do viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida. A prefeitura posteriormente retirou as outras.

O gesto do padre vem carregado de significados. Um primeiro ilumina a importância de uma empatia mais atuante. No meio da grave crise que vivemos, não basta sentir solidariedade com os que sofrem; há que agir com base no sentimento de compaixão. O outro é sobre o esforço de dar visibilidade aos graves problemas que o Brasil vive e não varrê-los para debaixo do tapete.

Seria bonito se os viadutos não hospedassem pessoas que, por razões diversas, inclusive inadequação e insuficiência de abrigos ou falta de investimento em políticas sociais efetivas, ali têm que viver. Mas dificultar-lhes a proteção contra intempéries no pior momento da crise da Covid, sem lhes oferecer uma alternativa segura, chega a ser cruel.

Agora, ao escancarar o problema dessa maneira, o padre obriga o poder público e a sociedade a engendrarem uma solução adequada e humana.

"No meio do caminho", parodiando Drummond, tinha um padre. Abençoado seja o religioso!

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