Claudia Costin

Diretora do Centro de Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

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Voz e memória, ou o que dirão os livros de História?

Como nossos filhos e netos vão falar do que viram ou ouviram durante a crise da Covid?

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Num livro ficcional recente, “Silence Is a Sense”, a jovem escritora kuwaitiana, especialista em literatura árabe, Layla Alammar, narra experiências de uma refugiada síria sem voz —por não conseguir fazê-lo ou por optar por não falar, não se sabe— que, ao observar da janela de seu apartamento a vida dos demais habitantes do prédio, imagina suas vidas e desafios.

Na verdade, a protagonista da história dá voz a suas percepções sobre a vida de seus vizinhos, no texto escrito, aparentemente para abafar suas próprias memórias, das quais se sente prisioneira. Mas elas sempre retornam.

A leitura trouxe-me à lembrança o fantástico “As Ondas”, a obra mais experimental de Virgínia Woolf, em que a autora registra pensamentos não expressos de um grupo de personagens que envelhecem juntos —ou quase todos juntos— inclusive uma que parece ser a expressão da própria autora, Rhoda, que acaba, como Woolf, cometendo suicídio.

Nos dois livros aparece a questão, frequentemente apontada em estudos de historiografia e de antropologia, sobre como lembramos de experiências vividas ou observadas e sobre as narrativas que se incorporam a nossa memória, tentando dar nexo a fragmentos dispersos.

Ao procurar registrar fatos não documentados, apenas a partir de relatos dos que os vivenciaram, os historiadores acabam tendo que lidar com vozes dissonantes que organizam o que viram em sequencias distintas, marcadas por seus vieses culturais ou seu lugar de observação.

Ao ler os dois livros, um logo depois do outro, no isolamento em que me encontro, não pude deixar de pensar em como nossos filhos e netos vão falar, a seus descendentes, do que viram ou ouviram de vozes familiares durante a crise da pandemia da Covid-19.

Infelizmente, eles terão que contar que, simultaneamente à crise sanitária, vivemos uma crise política, repleta de factoides criados para nos pôr a discutir os temas errados e, assim, encobrir a inépcia governamental na condução das diferentes políticas públicas. Será que falarão disso ou a memória vai apagar estes tristes episódios e eles não aparecerão nos livros de história do futuro?

É curiosa esta relação entre memórias e história. George Orwell dizia que a história é escrita pelos vencedores, o que parece verdadeiro. Mas, de alguma maneira, a voz dos que não participam de grandes feitos, e se encontram do lado errado, teima em ficar registrada em algum canto. Cabe aos bons historiadores —ou à literatura— fazer um trabalho de escavação e trazê-la à tona.

Como fez, aliás, Itamar Vieira Junior no seu “Torto Arado”, com outra jovem, também sem voz, a incrível Belonísia.

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