Cláudia Collucci

Jornalista especializada em saúde, autora de “Quero ser mãe” e “Por que a gravidez não vem?”.

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Cláudia Collucci

A indiferença aos mortos é o maior escândalo da pandemia de Covid-19

Manifestações contra isolamento social próximas a hospitais revelam total falta de empatia à dor do outro

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Nos últimos dois dias, ao menos dois médicos que atuavam em São Paulo e na região do ABC morreram por complicações da Covid-19. Frederic Jota Silva Lima, de 32 anos, na segunda (20) e André Fernando Miyake, de 56 anos, terça (21).

Lima trabalhava em uma UPA de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e em outra ligada ao Hospital Santa Marcelina, em Itaquera (zona leste de SP). Miyake, no Hospital Beneficência Portuguesa, em Santo André (ABC).

Talvez por ser tão jovem e representar tão bem essa nova geração de médicos idealistas que atuam no SUS, a morte de Frederic Lima causou muita comoção nas redes sociais, com relatos tocantes de colegas.

“Hoje perdemos um guerreiro que tinha exatamente a mesma idade que eu. Hoje perdemos um profissional da saúde que estava na mesma luta que eu. Hoje, mais do que nunca, recebi aquele soco da morte no canto do queixo que me deixou desnorteado, calado, choroso, dolorido”, escreveu o médico José Carlos Arrojo Júnior.

Ouro colega, Osmar Netinho, postou: “Mais um combatente do bom combate sucumbiu! Um colega de Santa Marcelina. Na mesmíssima hora que outros colegas lutavam com o Frederic pra ele continuar a viver, rolava na avenida Rebouças, pouco metros à frente do Emílio Ribas, uma manifestação de partidários ao fim do isolamento social.”

Essas mortes se somam a tantas outras que ocorrem diariamente no Brasil e do mundo. No caso dos profissionais de saúde, já são tantas que o site Medscape fez uma página memorial onde homenageia os que morreram durante a pandemia, infectados pelo novo coronavírus.

Há profissionais de todas as idades. Do técnico de enfermagem John Alagos, 24, da Inglaterra, ao psiquiatra Charles Rodney Smith, 92, de New Orleans, Louisiana (EUA).

Do Brasil, aparecem os médicos Lúcia Dantas Abrantes, 66 (Fortaleza), José Manoel de Melo Gomes e Pedro Di Marco, 64 (Rio de Janeiro), Maria Altamira de Oliveira, 71 (Natal), Paulo Fernando Moreira Palazzo (Natal), Nelson Martins Schiavinatto, 80, (Paraná).

E do pessoal da enfermagem, como Viviane “Vivi” Rocha de Luiz, 61 (Brasília) e Idalgo Moura, 45 (São Paulo), Betânia Ramos, 55 (Recife), Anita Viana, 63 (Rio de Janeiro) e a técnica de laboratório Adelita Ribeiro da Silva, 38 (Goiânia). Tem ainda muita gente de fora, sugiro que colegas e familiares de profissionais da saúde mortos pela Covid entrem na página do Medscape e acrescentem os nomes deles.

Ao mesmo tempo em que grande parte do mundo se comove com as mortes e com tantas outras perdas causadas por essa crise humanitária, há aquela parcela da população, muito bem representada pelo presidente Jair Bolsonaro, que parece indiferente a essa dor.

Em plena quarentena, saem às ruas em manifestações contra o isolamento social. Buzinam perto de hospitais onde tantos lutam pela vida. Onde o jovem Frederic lutava pela vida.

Isso me fez lembrar do romance A peste, de Albert Camus, obra setentona (1947) mais atual do que nunca. Além de aprofundar a análise da doença desconhecida que se abateu sobre a pequena cidade, o filósofo coloca na boca da personagem Jean Tarrou outra ideia da peste: aquela que cada um traz em si, que está incorporada, arraigada na sociedade e é responsável por toda espécie de injustiça, por toda indiferença.

A indiferença é o escândalo, a verdadeira banalização do mal. E a maior desgraça é acostumar-se à desgraça, diz o narrador.

Essa pandemia tem trazido muita dor e medo. Dores pelos mortos, por suas famílias. Medo da nossa finitude, das perdas financeiras, do que pode acontecer aos mais vulneráveis.

A desigualdade social já se reflete na distribuição de mortos na capital paulista, 40% dos casos confirmados estão na zona leste, a mais populosa e uma das mais vulneráveis da cidade. Dois dos hospitais da região têm ocupação de 100% dos leitos de UTIs.

A única forma de mitigar essa catástrofe no momento é o isolamento social. Uma flexibilização já está sendo pensada, mas precisa se apoiar nas melhores evidências antes de ser colocada em prática.

Já temos sofrimento e sandices de sobra. Ninguém precisa de buzinas em frente a hospitais e tumulto na av. Paulista. Se você não consegue ser empático com a dor do outro, não se comove com os mortos da Covid-19, a sua doença é muito pior. Procure ajuda psiquiátrica.

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