É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
Freud x Castro, ganha Freud
Enrique De La Osa - 28.nov.2016/Reuters | ||
Pessoas prestam homenagem a Fidel Castro em Havana |
Minha primeira viagem a Cuba foi em 1977, quando a ilha ainda era proibida para brasileiros, como aconteceu durante toda a ditadura militar.
Por isso, meu périplo foi uma meia volta ao mundo. O visto cubano, tive que tirá-lo em Paris, graças à intermediação de Reali Júnior (1941-2011), o único jornalista brasileiro de quem nunca ninguém falava mal, tão nobre figura era, além de profissional de primeira.
De Paris fui para Madri para pegar o voo da Iberia que me deixaria em Havana.
Como a viagem incluía uma passagem pelos Estados Unidos, para ouvir os cubanos no exílio, a volta foi igualmente complicada: havia à época poucos países que tinham voos de e para Cuba. Então, saí pelo Panamá para de lá seguir para Washington.
Conto o percurso para mostrar, no detalhe, como o isolamento imposto à ilha caribenha era amplo - e inútil. A revolução sobreviveu a ele; penosamente, mas sobreviveu.
Sofreram os cubanos comuns, mas não o regime.
Entre o material de apoio que li para preparar a viagem figurou, com destaque, o livro "A Ilha", de Fernando Morais, então apenas jornalista e não o escritor famoso de hoje.
O livro informava que os cubanos não aceitavam gorjetas, imbuídos como estariam de fervor revolucionário.
Acreditei, até chegar ao hotel. O "botones", como são tratados em espanhol os "boys" de hotéis, que levou minha mala ao quarto não leu o livro de Fernando Morais.
Depositou a mala no chão e permaneceu de pé, esperando. Eu, crédulo, nem pensei em lhe dar gorjeta, com medo de ser preso como um burguês contrarrevolucionário.
E ele nem pensou em sair do quarto sem "la propina". Ficamos ali, olhando um para o outro, por momentos que me pareceram intermináveis. Até que a persistência nada revolucionária dele me venceu. Estiquei a gorjeta e ficamos amigos para sempre.
Foi o meu primeiro microcurso sobre o invisível confronto entre o ser humano que Freud tão bem analisou e o mito revolucionário da classe operária, que Marx tanto endeusou.
Acho, por pura observação empírica, que Freud ganha sempre. O ser humano, com exceções, claro, quer mesmo incentivos materiais e se lixa para o fervor revolucionário.
Houve inúmeras outras aulas nesse curso informal, mas a principal delas foi dada por Ernesto Guevara, o Che, um raro caso de líder capaz de abandonar o conforto do poder para sair pelo mundo defendendo seus ideais, estejam eles certos ou errados.
Mas o Che, como ministro da Indústria, já havia descoberto que construir o socialismo requereria reconstruir o homem cubano (e todos os homens do mundo), criando "el hombre nuevo". O pressuposto implícito era o de que a sociedade havia sido corrompida pela cultura do capitalismo e não aceitaria os sacrifícios e privações inevitáveis na construção de um novo modelo.
Noto agora, ao ler a reportagem sobre Cuba desse notável repórter que é Fabiano Maisonnave, que a lição do Che colou em pelo menos um cubano, Mario Betancourt, 73 anos, que disse à Folha que "ser comunista significa muitas coisas, como deixar de ser egoísta".
Na teoria, é assim, mas, na vida real, exceto os militantes, que são minoria em qualquer país, o ser humano é movido por interesses que não têm parentesco próximo com a utopia socialista da igualdade e da fraternidade. É assim desde que o mundo é mundo.
Talvez por isso, o chamado socialismo real nunca gerou igualdade e fraternidade e, sim, ditaduras e privilégios para a nomenclatura (o egoísmo mudou de lado), sem falar no fracasso econômico.
Se Marx tivesse esperado Freud nascer e crescer, para só então lançar seu Manifesto Comunista, já com a incorporação das inevitáveis imperfeições do ser humano, talvez a história fosse diferente. Ou talvez nem houvesse o Manifesto.
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