É repórter especial. Ganhou prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Escreve às quintas e aos domingos.
Ditaduras são sempre tóxicas
Sana - 9.jan.207/Associated Press | ||
O ditador sírio Bashar al-Assad durante entrevista a jornalistas na capital, Damasco |
É tarde demais para o mundo se horrorizar com o ataque com armas químicas ocorrido na terça-feira (4) na Síria.
O horror é inerente às ditaduras, de qualquer coloração política, e elas se instalam ou se mantêm ante a indiferença e/ou impotência do mundo civilizado. No caso da Síria, a ditadura do clã Assad já dura 46 anos, primeiro com o pai, Hafez, e a partir de 2000 com o filho Bashar. Que esse horror suba alguns pontos na escala, com ataques com armas químicas, é tudo menos surpreendente.
Até porque já ocorreu antes: o "Buzzfeed" relata que, em outubro passado, uma investigação conjunta das Nações Unidas e da Organização para a Proibição de Armas Químicas denunciou que forças aliadas ao governo sírio haviam usado armas químicas pelo menos três vezes entre 2014 e 2015.
O caso mais notório ocorreu em 2013, com o uso de gás sarin em Ghouta, nas imediações de Damasco, o que causou a morte de cerca de 500 pessoas. O episódio levou a um acordo, organizado por EUA e Rússia, pelo qual o governo sírio entregou, em tese, todo o seu arsenal de armas químicas para destruição.
Se, como tudo parece indicar, o ataque desta semana é de responsabilidade do governo ou de aliados, fica claro que nem todo o arsenal foi destruído. Escrevo antes de saber o resultado da sessão de emergência das Nações Unidas, até porque é desnecessário esperar: se tivesse que agir, a comunidade internacional deveria tê-lo feito no início da crise síria, em março de 2011.
Tratava-se, então, da revolta de parcela importante da sociedade civil contra a ditadura. Revolta pacífica, reprimida, porém, com a violência característica de toda ditadura.
Deu no que deu: os rebeldes pegaram em armas, o regime endureceu ainda mais, outros países se envolveram –e, seis anos depois, "era uma vez um país, a Síria", como escreve o radialista Fouad Roueiha no capítulo sírio do livro "Rivoluzioni Violate", editado na Itália a propósito da fracassada Primavera Árabe.
É natural que um ataque com armas químicas acenda sinais de alarme e desperte gritos de indignação, mas o alarme e a indignação deveriam ter ocorrido também (ou principalmente) ante os 470 mil mortos, os 5 milhões de refugiados no exterior e os 6,3 milhões de refugiados internos.
Para ficar só no tema armas químicas, "desde o início do conflito em 2011, mais de 14 mil pessoas foram vítimas de ataques com armas químicas e mais de 1.500 morreram em decorrência", escreve para o "New York Times" Ahmad Tarakji, da Sociedade Médica Sírio-Americana.
Para um país de cerca de 18 milhões de habitantes, tais números desenham o pior desastre humanitário desde a 2ª Guerra Mundial, como admitem os organismos das Nações Unidas. A ditadura e a guerra que ela atiçou deixaram a Síria com 85% da população na pobreza, com mais de 2/3 em extrema pobreza, e 1,75 milhão de crianças sem escola.
Uma tragédia inenarrável a que o mundo assistiu, às vezes horrorizado, mas sempre passivo.
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