Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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O fim de Zuma ou como o arco-íris pós-apartheid não foi para todos

Saída do presidente sul-africano mostra que situação da maioria negra não mudou

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Jacob Zuma, o presidente sul-africano, sobreviveu a pelo menos oito votos de desconfiança submetidos ao Parlamento, em seus quase nove anos de poder, mas está para ser defenestrado pelo seu próprio partido, o mitológico CNA (Congresso Nacional Africano).

Tornou-se uma carga insuportável conforme deixou claro para "News24", o noticiário 24 horas do país, um dos "top six", como a mídia local chama o grupo que dirige o partido:

"Eles [os "top six"] disseram a Zuma que queriam começar uma campanha eleitoral e não podiam fazê-lo com ele na Presidência, com toda a sua bagagem".

 

"Bagagem" é uma maneira elegante de se referir às 18 acusações de corrupção que pesam sobre o presidente.

A mais relevante delas remete, de certa maneira, a um fenômeno bem conhecido no Brasil: a "captura do Estado", como os sul-africanos designam os conluios com empresas privadas que atacam os cofres públicos. Se você pensou em Odebrecht, OAS e similares, pensou bem.

Ocorre aqui, ocorreu lá (ou ainda ocorre).

Em lugar de Odebrecht, no caso sul-africano leia-se Gupta, uma família de origem indiana que se tornou sócia do Estado com Zuma.

Um segundo ponto talvez seja ainda mais agressivo para a maioria da população: Zuma usou fundos públicos para reformar sua residência particular, em Nkandla, dotando-a de luxos como anfiteatro, piscina, centro para visitantes e até curral para o gado.

Ficou exposta ao público a evidência de que o fim do apartheid, em 1994, beneficiou alguns membros da elite negra, como Zuma se tornou, mas não modificou substancialmente a situação da maioria negra.

Escreve para "Foreign Affairs" Sisonke Msimang, ativista e escritor: "Vinte e três anos após a transição para a democracia, permanecem firmemente de pé as desigualdades sistêmicas raciais e econômicas que mantiveram pobre a maioria dos negros sul-africanos enquanto preservavam a riqueza e os privilégios gozados pela maioria dos brancos".

Um dado é especialmente ilustrativo a respeito das desigualdades: o desemprego atinge, no momento, 31% dos negros e 23% dos "coloureds" (os mestiços), mas, para os brancos, é de apenas 7%.

Até recentemente, os sul-africanos aguardavam pacientemente que o CNA —o movimento que conduziu a luta contra o apartheid— melhorasse as condições de vida da maioria, tal como prometera durante a luta.

A conciliação com os brancos foi a tônica de Nelson Mandela, o grande herói sul-africano e o primeiro presidente do pós-apartheid.

Em outra coincidência com o Brasil, foi em 2013 (o anos dos grandes protestos no Brasil) que se deu a primeira grande rachadura nessa paciência: um líder da juventude do movimento, Julius Malema, rompeu com o CNA e criou o grupo EFF (sigla em inglês para "Economic Freedom Fighters"), que prega uma radical redistribuição de riquezas por meio do ataque aos privilégios dos brancos.

Malema defende "uma mudança fundamental na estrutura, nos sistemas, nas instituições e padrões de propriedade, gerenciamento e controle da economia em favor de todos os sul-africanos, especialmente os pobres".

(Outro ponto de contato com o Brasil: era o que o PT pregava, antes de chegar ao poder; depois, Lula considerou "bravatas" as teses de seu partido e desprezou-as).

É esse o pano-de-fundo para o iminente afastamento de Zuma e que serve de alerta para o seu substituto, o vice-presidente e novo líder do CNA, Cyril Ramaphosa. Ele é outro membro da elite negra que ficou rico e defende o entendimento com a elite branca.

Sua ascensão pode tirar da pauta a "bagagem" da corrupção que Zuma carrega mas deixará pendente o enfrentamento das desigualdades para dar concretude ao rótulo de "nação arco-íris" como o arcebispo Desmond Tutu batizou seu país após o fim do apartheid.

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