Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

A gente se acostumou até com o inferno

A saudável reação ao assassinato de Marielle pode não passar de chuva de verão

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Em apenas cinco palavras, Ágatha Arnaus deu a explicação definitiva para a degradação infernal que assola o Brasil faz séculos:

“A gente acaba se acostumando", disse Ágatha, a viúva de Anderson Gomes, o motorista da vereadora Marielle Franco, cuja execução representa a descida do país ao penúltimo círculo do inferno (sim, sempre conseguimos cair mais, mesmo quando parece que chegamos ao fundo do poço).

A gente se acostumou a perder o direito constitucional de ir e vir, desde que ir a determinados lugares significava correr enorme risco de não poder vir de volta.

 

A gente se acostumou a que a vida no Brasil é uma roleta russa: a gente nunca sabe se e quando a bala vai estar na agulha e nos atingir.

A gente se acostumou a seguir os conselhos da polícia, impotente ante o crime, de ceder o relógio, o celular, o dinheiro, o carro. Ou, no limite, a vida.

A gente se acostumou a aceitar que o Estado perdesse o monopólio do uso da força para grupos criminosos.

A gente se acostumou a aceitar o nome “milícias” para o que são esquadrões da morte.

A gente se acostumou à atuação delas, em paralelo ao crime organizado, por mais que, já faz 10 anos, uma CPI tivesse sido criada para investigar as milícias. Levou ao indiciamento de mais de 200 pessoas, entre políticos, policiais militares e civis e bombeiros. Foram presos o então deputado Natalino José Guimarães e o vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, por chefiarem milícias no Rio, conforme lembrou a excelente reportagem de Fernanda Mena nesta Folha.

Quem liderou a CPI? Marcelo Freixo, do PSOL, com quem trabalhava à época Marielle.

Se esse dado não aponta o dedo para os mais que prováveis responsáveis pelo crime de Marielle, não sei o que mais poderia apontar.

A gente se acostumou também a aceitar que se prendam apenas os que puxaram o gatilho, no caso Marielle ou em dezenas, centenas, milhares de outros, sem que se chegue aos que deram as ordens.

A gente se acostumou ao apartheid social, origem de fundo de tantos males. Não só se acostumou: distraídos e/ou desonestos intelectualmente até festejaram a suposta queda da desigualdade nos anos do PT. A gente aceitou a fraude, até descobrir que a desigualdade não caiu: a porcentagem que cabe aos 10% mais ricos, já obscena antes do PT, subiu de 54% para 55% de 2001 a 2015 (período quase todo sob Lula/Dilma).

A gente se acostumou à degradação da escola pública nos últimos 50 anos, poucos mais, poucos menos. É consequência direta ou indireta do apartheid social. No meu tempo de estudante, todo ele transcorrido em escolas públicas, o acesso era para poucos, basicamente para a classe média, e era ótimo.

A partir do instante em que se massificou o acesso à educação, a gente se acostumou a achar que os pobres que a ela chegavam não precisavam de ensino de qualidade —e todos os testes educacionais globais acabam sempre colocando o Brasil em situação vexaminosa.

A gente se acostumou com uma saúde pública eternamente degradada e acabou aceitando, os que podiam, migrar para os planos de saúde privados, que tradicionalmente figuram entre os que mais reclamações provocam nos organismos de defesa do consumidor.

A gente se acostumou à corrupção. Todos os políticos presos ou sendo processados foram eleitos, por mais que inúmeros deles estivessem há anos sob suspeita.

Bem feitas as contas, a gente se acostumou com todas as mazelas que acabaram armando o cenário para a execução de Marielle. Espero estar enganado, mas a saudável reação a seu assassinato, essa indignação coletiva levada à praça pública, pode não passar de chuva de verão. É intensa, caudalosa, mas não dura muito e a gente se acostuma à essa estiagem da civilização em que o Brasil morre um pouco a cada dia.

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