Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi
Descrição de chapéu Rússia

Nova Guerra Fria é 'fake news'

A Rússia que reelegerá Putin perdeu capacidade de atração; resta-lhe ser spoiler do Ocidente

Manchete de Le Monde deste sábado (17): “Contra Putin, frente unida com perfume de Guerra Fria”.
El País também evocou uma “nova Guerra Fria”, a partir das reações dos grandes países ocidentais a ações (supostas ou reais) da Rússia.

É um exagero comparar os incidentes atuais com a Guerra Fria, por uma razão simples: no confronto antigo, tratava-se de uma disputa ideológica para ganhar países clientes, para um lado ou para o outro.
Hoje, a Rússia funciona, pura e simplesmente, como “spoiler”, um desmancha-prazeres do Ocidente, porque ninguém em sã consciência cogitaria copiar o modelo russo, aliás “incopiável”.

O comunismo perdeu a Guerra Fria para o capitalismo. O que se instalou na Rússia desde o fim da União Soviética pode ser descrito de várias maneiras, nenhuma delas atraente.

Figuras representando o russo Vladimir Putin, o americano Donald Trump e o norte-coreano Kim Jong-un, em festival em Valencia
Figuras representando o russo Vladimir Putin, o americano Donald Trump e o norte-coreano Kim Jong-un, em festival em Valencia - Heino Kalis/Reuters

Gregory Feifer, diretor-executivo do Instituto de Assuntos Mundiais Correntes, escreve, por exemplo: “Putin ofereceu aos russos uma terceira via: autoritarismo com liberdades pessoais (embora algumas restrições tenham reaparecido mais recentemente)”.

Os russos compraram a oferta, pela simples e boa razão de que ao fracasso do comunismo seguiu-se uma orgia político-econômica em que “os russos ricos acumularam riqueza no exterior cerca de três vezes maior que o valor líquido das reservas externas do país”, segundo levantamento do Escritório Nacional de Pesquisa Econômica.

Corolário inevitável: tremendo aumento da desigualdade, muito mais significativo do que o que ocorreu nos países anteriormente comunistas do Leste Europeu e na China. Como, no chamado Terceiro Mundo (campo de batalha preferencial da Guerra Fria), a desigualdade já é uma lacra tremenda, quem é que se interessaria por seguir esse modelo?

Até porque são os bilionários e oligarcas que sustentam o putinismo.

É sintomático, a propósito, que o candidato do Partido Comunista às eleições deste domingo (18) seja um empresário, Pavel Grudinin, dono de uma fazenda de plantação de morangos. Grudinin definiu o regime russo, para El País, em termos ainda mais cruéis: “Cleptocracia oligárquica”.

Não quer dizer que Putin não seja perigoso. O já citado Feifer diz que “a Rússia poderia eventualmente tomar lugar de vanguarda no autoritarismo de direita”.

Até certo ponto, já tomou: trabalhou para colocar no segundo turno Marine Le Pen, a líder da extrema-direita francesa. Conseguiu. Ela perdeu no segundo turno e depois disso minguou muito, mas há uma inegável ascensão mundial do autoritarismo de extrema-direita, de que Putin acaba sendo o campeão.

Ainda assim, a Rússia de Putin continua sendo apenas um “spoiler”, não um modelo a seguir. A verdadeira guerra, de natureza econômica, é entre a ditadura capitalista da China e o capitalismo liberal, de que os EUA até Trump eram os campeões.

A Rússia é secundária nesse jogo, até porque, na passagem de União Soviética para Rússia, perdeu 23,8% de seu território, 48,5% de sua população, 41% de seu PIB, 39,4% de seu potencial industrial e 44,6% de seu potencial militar, pelas contas do próprio Putin.

Como não pode confrontar a China, só lhe resta mesmo atazanar a vida do Ocidente.

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