Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

O tiro que mata o diálogo, já moribundo

Os tiros contra ônibus da caravana Lula são o ápice, por enquanto, da selvageria que se foi instalando no Brasil nos últimos muitos anos. A principal vítima desse processo é o diálogo, instrumento indispensável para se fazer política, para se construir maiorias, para adotar medidas que tenham um mínimo de consenso social.

Pode-se gritar que a democracia está sendo atingida, como fazem alguns petistas e esquerdistas em geral, como se pode dar de ombros e afirmar que “o PT colhe o que plantou", como disse o governador Geraldo Alckmin, para depois retificar e afirmar que “violência tem que ser condenada” (frase tão óbvia quanto dizer que o sol nasce todos os dias).

Nada disso esconde o fato de que a transformação da política em guerra tribal, entre “coxinhas” e “mortadelas”, acabou com a conversa.

Não se trata mais de argumentar com os adversários, mas de xingá-los —e os apelidos dados aos adversários mostram, por si só, o nível indigente da guerra.

O que muda a guerra de patamar é o tiro. Entre xingar o “inimigo” e disparar contra ele há um abismo que deveria ser intransponível.

Se foi transposto agora, é porque o Brasil, que nunca foi propriamente um país civilizado, resvala ainda mais para a barbárie —e o que está havendo no Rio de Janeiro é, aliás, muito mais representativo do estágio atual de degradação da vida no país.

Descobrir quem deu os tiros talvez seja possível. Digo talvez porque o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes chega à segunda semana sem que os culpados tenham sido apontados.

O impossível, no entanto, é descobrir os culpados pelo assassinato do diálogo. São tantos - e estão sempre do lado contrário ao que cada tribo defende - que não parece ter mais jeito.

Lembro que, há pouco mais de um ano (em 2 de fevereiro de 2017), os dois principais líderes das tribos em confronto se encontraram no hospital em que agonizava a mulher de Lula, Marisa Letícia.

Fernando Henrique Cardoso estava acompanhando de José Gregori, que fora seu ministro da Justiça e sempre teve destacado papel na defesa dos direitos humanos. Lula, por sua vez, chamou para a conversa o seu ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim.

Falaram sobre muitos assuntos, sobre a vida, sobre o papel das mulheres e, inevitavelmente, sobre política.

A certa altura, Amorim soltou uma frase que é corretíssima e deveria ter desdobramentos:

"Vocês dois têm a obrigação de devolver a esperança ao Brasil", rememorou o ex-chanceler à Folha dias depois.

Como fazê-lo? Pelo diálogo entre os dois, pregou Amorim.

Não houve diálogo, houve apenas a continuação do tiroteio verbal até que se chegasse a um tiro de verdade. Atingiu o diálogo e, com isso, feriu de morte a esperança antevista pelo ex-chanceler.
 

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