Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Outra fraude da esquerda fica exposta

O sandinismo desperta a ira com reforma das pensões

Nicaraguenses protestam com cartaz que diz "Daniel assassino, Nicarágua te odeia", em San José da Costa Rica - Ezequiel Becerra - 23.abr.2018/AFP

O líder da Revolução Sandinista —aquela que despertou admiração mundial pelos “muchachos” que dela participavam —  está agora matando “muchachos", os jovens que se levantaram na semana passada contra uma reforma da Previdência, afinal abandonada.

Daniel Ortega, o revolucionário dos anos 70, convertido em presidente autoritário e aliado aos setores mais reacionários e corruptos da Nicarágua, mandou sua tropa de choque atacar estudantes da Universidade Politécnica, centro da rebelião, enquanto os estudantes faziam uma vigília pelos mortos depois de cinco dias de repressão, relata Confidencial, publicação online que é das melhores do país.

No total, foram ao menos 27 os mortos e mais de 100 os feridos nesses cinco dias, além de saques aos comércios e danos à propriedade pública.

O abandono da reforma não fez cessar a mobilização, tanto que, na segunda (23), milhares de pessoas marcharam por Manágua. Ironia: cantavam “el pueblo unido jamás será vencido", um cântico que foi patrimônio da esquerda.

De certa forma, dá para aplicar aos protestos na Nicarágua o mesmo bordão usado nas manifestações de 2013 no Brasil. “Não é só pelos R$ 0,20", o valor do aumento das passagens de ônibus. Era também contra os gastos abusivos nos estádios para a Copa do ano seguinte e pelas carências históricas do Brasil, em saúde, educação, habitação, segurança, pobreza etc.

Na Nicarágua de 2018, “a Previdência já não é o tema, mas a liberdade de expressão, a corrupção e tantos outros temas", disse a Confidencial a presidente da opositora Frente Ampla pela Democracia, Violeta Granera.

Acrescentou: “A situação da Nicarágua só tem duas saídas, ou que Ortega renuncie à Presidência ou que convoque eleições livres, transparentes e competitivas de imediato".

Reforça, em The New York Times, Fidel Moreira, diretor-executivo do Centro para Estudos da Governabilidade e a Democracia (que apoia os protestos): “O objetivo das pessoas nas ruas era tirar do poder o casal presidencial" (Ortega escolheu sua mulher, Rosario Murillo, para ser sua vice-presidente, configurando um poder dinástico no molde dos Somoza contra quem os sandinistas se levantaram —e derrubaram em 1979).

A revolta dos “muchachos” contra os Somoza acabou em um regime assim descrito por Carlos Chamorro, diretor de Confidencial e dono de um sobrenome de sólida história na resistência ao somozismo, antes, e ao “orteguismo” agora:

“Durante una década, Ortega impôs uma ditadura institucional, um regime Estado-Partido-Família que concentra todos os poderes do Estado, incluindo o exército e a polícia, e promete ordem social, combinando estabilidade econômica com repressão seletiva e cooptação social.

O controle absoluto do poder, que só compartilha com sua esposa, a vice-presidente Rosario Murillo, lhe permitiu sufocar queixas políticas por fraudes eleitorais e os protestos de camponeses ante o fracassado megaprojeto do canal interoceânico” (um canal que competiria com o do Panamá e seria outorgado a um investidor chinês).

A esse descalabro institucional, somou-se agora o decreto de reforma da Previdência. Com ele, um presidente que a esquerda considera como sendo de sua (minguante) família propõe medidas mais duras do que a defendida por Michel Temer, o presidente que a esquerda ama odiar.

Para começar, em vez de mandar ao Parlamento um projeto, como o fez Temer, preferiu a via do decreto. Além disso, a reforma Ortega aumenta substancialmente as contribuições tanto de patrões como de empregados, impõe um imposto às pensões dos já aposentados e, ainda por cima, reduz as aposentadorias futuras.

Todo esse peso jogado em um país em que 60% da população é considerada pobre multidimensional - ou seja quando se computam, além da renda, que já é baixa, fatores como saúde, educação, habitação, acesso à água e esgoto.

Como se fosse pouco, 39 anos depois da vitória dos “muchachos” sandinistas, a renda per capita dos nicaraguenses ainda é inferior à de 1977, quando a nefanda ditadura de Somoza já agonizava.

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