Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

E o porão era no andar de cima

A CIA envolve toda a hierarquia nos crimes da ditadura

Figueiredo aparece em um púlpito com dois microfones e papéis, olhando para Geisel, que está à sua direita; atrás, assessores de terno
Com a faixa presidencial, João Baptista Figueiredo discursa na posse ao lado de seu antecessor, Ernesto Geisel, em Brasília - 15.mar.79/Folhapress

Que havia assassinatos praticados pela repressão durante a ditadura do período 1964/85 ninguém tinha o direito de duvidar. Basta lembrar um caso já devidamente esclarecido: o da morte do jornalista Vladimir Herzog, nas dependências do Doi-Codi de São Paulo.

Até aí, portanto, o documento da CIA agora divulgado não chega a ser uma novidade. A novidade, a chocante novidade, é que o porão ficava (também) no andar de cima. No mais alto andar da República, a própria Presidência.

Até que esse excelente pesquisador que é Matias Spektor trouxesse a público o relatório da CIA quase todo o mundo no Brasil acomodou-se à ideia de que, sim, havia torturas, prisões clandestinas, mortes e outras violências mas era melhor acreditar que se tratava de ações de um grupo de celerados de farda, não autorizadas pelo andar de cima.

Agora, a se acreditar no relatório da CIA, vê-se que o general Ernesto Geisel autorizou a execução de “subversivos perigosos”, o que introduz uma pitada aberrante ao que já era uma aberração. Cabia aos torturadores determinar quem era subversivo, primeiro, e perigoso, depois —conceitos subjetivos por natureza, mas levados à paranoia durante a ditadura.

Choca também o fato de que a autorização para matar veio de Geisel, o general que deu início à então chamada abertura lenta, gradual e segura, além de ter tomado uma ou outra iniciativa para coibir os abusos dos porões. Se um general-presidente mais moderado autoriza execuções, arrepia pensar o que diriam seus antecessores, considerados mais duros.

O relatório da CIA torna mais fácil entender porque os militares brasileiros jamais fizeram uma autocrítica institucional, jamais pediram desculpas pelas violações sistemáticas aos direitos humanos. Não podiam: do andar de cima ao porão toda a hierarquia foi cúmplice de um sistema abominável.

Ao contrário da prestação de contas, cobriram-se com uma Lei de Anistia, que teoricamente valia para os crimes de um lado e de outro. Não é bem assim: os “subversivos” —perigosos ou não— foram punidos. Com a morte, com a tortura, com o banimento, com a prisão, com o exílio, com a perda de direitos políticos.

Entre os militares, ao contrário, só um ou outro foi punido. Pior: neste ano eleitoral, pela primeira vez desde a redemocratização, há um candidato que reivindica a ditadura (e a tortura) e há um setor do público que pede a volta dos militares.

É uma vergonha, mas é o Brasil que tivemos e que temos, talvez por nunca ter sido passado a limpo.

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